Os paradoxos cativam-me, algumas contradições também, já agora,
mas ter um título em que uma das coisas que mais exaltamos ou desejamos se
encontra lado a lado com uma postura que cada vez menos aceitamos abriu
imediatamente o meu apetite.
O que é Inteligência Humilhada?
Na introdução, Madureira diz que o livro é dirigido tanto
aos que sacrificam a fé em prol do intelecto, como aos que sacrificam o
intelecto em prol da fé, isto é, o termo de Inteligência Humilhada tenta ser um
equilíbrio entre dois extremos, o da defesa de que a fé é suficiente para
garantir ou avaliar o conhecimento de Deus (fideísmo) e o de que a fé não é
necessária para esse conhecimento (racionalismo). Com o conceito de Inteligência
Humilhada, Madureira reconhece o papel da fé e da razão para se chegar ao
conhecimento de Deus, nas suas palavras, Inteligência Humilhada é então fé que
não tem medo de pensar, duvidar ou questionar; é a consciência da humilhação da razão que nos
faz reconhecer o papel fundamental da fé. Madureira trabalha o conceito a
partir de cinco autores – Agostinho, Anselmo, Calvino, Pascal e Herman
Dooyeweerd.
O primeiro ponto a captar a minha atenção é o da piedade ser
uma consequência obrigatória da gratidão e não da inteligência. Tendo como base
as Confissões de Agostinho e duas citações de Evrágio Pôntico (“Se és teólogo,
vais orar verdadeiramente, se orares verdadeiramente, és teólogo.” ; “A oração
é uma conversa da inteligência com Deus.”) defende-se que a teologia só pode
ser feita num ambiente de piedade, devoção e amor, ou seja, apenas o regenerado
pode amar a Deus acima de todas as coisas, e por isso, conhecê-Lo com
profundidade, i.e., há uma diferença entre falar de Deus e falar com
Deus. Madureira, a partir de I Cor. 13:12, inicia a discussão do conhecimento
de Deus e do nosso conhecimento por parte de Deus, realçando dois pontos, por
um lado, nunca conheceremos Deus completamente, no aqui e agora, mesmo através
de mediações ou por causa delas; mas Deus conhece-nos perfeita e directamente.
Se aceitarmos estes pressupostos, então a nossa inteligência já se encontra
humilhada, no sentido em que para conhecermos Deus precisamos necessariamente
de mediações, nem a nós mesmos conseguimos compreender perfeitamente, no
entanto, Deus conhece-nos mais completamente do que nós a nós mesmos. Madureira
faz eco do início das Institutas, em que Calvino diz que o verdadeiro
conhecimento acerca de nós será sempre fruto da revelação divina e não da
inteligência humana. O termo Inteligência Humilhada evidencia o temor e
a humildade como os pontos de partida para o conhecimento de Deus.
Packer escreve em Conhecendo Deus, “Preocupar-se em adquirir
conhecimento teológico como um fim em sim mesmo, aproximar-se da Bíblia para
estudá-la sem nenhum motivo além do desejo de saber todas as coisas é o caminho
directo para o autoengano complacente.”
Por isso, quando me conheço a mim mesmo como Deus
pretende, o primeiro fruto é a humildade, quando me conhecer bem saberei que
devo suspeitar de mim em primeiro lugar.
Madureira termina o primeiro capítulo a diferenciar
inteligência de tolice; ainda que tenhamos graus de inteligência diferentes,
para o autor, a tolice é inerente a todos os seres humanos. Somos libertos da
tolice por uma libertação interior autêntica. Contrariamente ao
Platonismo, no Cristianismo o Homem reconhece a sua completa insuficiência e
incapacidade para se libertar. “O tolo reconhece que somente um poder
infinitamente superior poderá convencer o tolo da sua tolice.”
Acrescentando sentido ao termo, Inteligência Humilhada não é
o sacrifício do intelecto, não é a morte da razão, mas o reconhecimento da
insuficiência da razão, reconhecimento dado por Deus aos Homens. “Deus não fala a teólogos, filósofos e
cientistas, mas a tolos perdidos em si mesmos.“
“A inteligência não é uma possibilidade, mas, sim, uma
realidade, a realidade da criação. A razão humana não deveria ser louvada
quando o homem se recusa a humilhar-se diante de Deus. “
“Diante de Deus toda a inteligência criada está sob a
condição da humilhação.”
O segundo capítulo continua esta lógica, “O Cristianismo é uma
religião que jamais teria passado por nossas cabeças” – C.S.Lewis.
A revelação divina depende de Deus, aquilo que conheço
acerca de Deus e dos Seus caminhos é aquilo que Deus revelou, confessar a
necessidade de Deus pressupõe já graça. “Sempre que alguém sente realmente
vontade de pedir socorro a Deus, isto é, de assumir a sua própria
insuficiência, ele já está sob a graça de Deus.” Luiz Filipe Pondé
Ora, se só conheço de Deus o que Este revela, uma das
perguntas que se coloca é a da minha capacidade de produzir conhecimento - o autor distingue entre insuficiência e desgraça, ele
explica que a insuficiência não é consequência da queda, antes da queda, o
Homem já precisava da Graça de Deus para conhecer e agir de modo justo. “A
natureza da necessidade mudou, porém, não a necessidade em si.”, Pondé
continua, “A teologia cristã nos ensina que a autonomia humana não passa de
ilusão, pois o homem foi criado para ser exactamente assim: insuficiente. O que
equivale a dizer que o homem é o que ele é, antes e depois do pecado, não
porque é um ser sem Deus, mas porque Deus o planejou como uma criatura ´para
ele´”.
Se o Homem é uma criatura que deseja Deus, criada para o
louvor, com o pecado essa inclinação não desaparece, mas é mal direccionada
(Romanos 1:22-23) e choca contra a impossibilidade de conhecer Deus.
Madureira olha para a natureza através da mediação das
Escrituras (Romanos 1:19-21) e conclui que a criação não revela quem Deus é,
antes que Deus existe. Hebreus 1:3 e Colossenses 1:15 mostram a diferença entre
o carácter pessoal da revelação divina e a impessoalidade da criação, é em e
por Cristo que vemos o Pai. A dificuldade em conhecer Deus não está em Deus,
mas na nossa incapacidade intelectual caída. O termo teológico é cegueira, o
sol pode brilhar, que o cego não o vê.
“A nossa inteligência não foi feita para ser livre. Ela está
sempre submissa a alguma cosmovisão. Se Deus não é o Senhor da sua mente, pode
ter a certeza de que ela terá outro senhor.” Voltaremos a esta questão no último capítulo do livro.
O capítulo 3 aborda a questão do mal, a Bíblia descreve Deus como todo poderoso e bondoso,
realidades diferentes, mas inseparáveis, pode um cristão que acredita neste Deus explicar o problema do mal, ou tentar compreendê-lo a partir da natureza divina? Madureira começa
a resposta explicando que o mistério bíblico não é irracional, mas
suprarracional, além da nossa compreensão e explicação. Este mistério humilha a
nossa razão humana e torna-a mais dependente de Deus.
“A origem do mal é um mistério. O mal não veio de Deus, e ao
mesmo tempo não está excluído do seu conselho(...) Depois da questão da própria
existência, a questão da origem do mal é o maior enigma da vida e a cruz mais
pesada que o intelecto tem de carregar.” Bavinck
Madureira usa 3 preposições:
1) Deus é todo
poderoso;
2) Deus é todo bondoso;
3) O mal está presente no mundo.
Para alguns, estas preposições só podem ser verdadeiras se
tomadas individualmente, em conjunto encaram-nas como uma contradição. Para
Pannenberg, o criador é omnipotente, isto é, o Deus que tudo criou exerce poder
sobre todas as coisas e o que faz é legítimo, porque lhe pertencem.
“O objetivo humilhada ressalta apenas a real condição da
inteligência humana, e não a atitude de uma inteligência que se humilha. Não é
a humilhação que torna a inteligência humilhada. Não há como humilhar aquilo que já é, por
natureza, humilhado. Ou seja, o homem está sob a condição da humilhação não
porque se humilhe, mas simplesmente porque é homem (...) O acto de humilhação
não é o que pode tornar os homens humilhados, mas, sim, o que pode torná-los
servos, absolutamente obedientes a Deus.”
Por outro lado, Cristo se fez servo, decidindo não se servir
da sua omnipotência.
Ou seja, a forma usual do homem lidar com o problema do mal
é dizer que Deus não é omnipotente e bom. Madureira reconhece que podemos ficar
chocados com Génesis 22, com o pedido de
Deus a Abraão, mas propõe que possamos ler o texto em conjunto com o resto das
Escrituras (por exemplo, Génesis 22 + Levítico 18:21+ Deuteronómio 12:31+
Génesis 18:10-15+Génesis 21:2; 22:2).
“A obediência de Abraão é a atitude consciente de alguém
que não separa a fé da obediência e que, sobretudo, demonstra confiança, tanto
emocional como racional, na Palavra de Deus.”
Deste modo, há duas reacções quando um Cristão reconhece a
bondade e omnipotência divinas de Deus mais as consequências da presença do mal
no mundo, uma lógica e outra emocional. A lógica é a apologética, que tenta
demonstrar como as 3 preposições não são contraditórias; a emocional é a
teodiceia, que tenta justificar Deus diante da presença do mal no mundo. Para Madureira,
nenhuma das respostas é suficiente para dar uma explicação; antes tenta
resgatar o papel e poder da lamentação na vida cristã.
“por que não há mais espaço para a lamentação dos cristãos
convictos em nossas liturgias? Por um motivo aparentemente óbvio: medo. A
lamentação é atemorizante, causa pavor. Ela destabiliza nossos pressupostos
teológicos, nos humilha, nos constrange, afinal nos obriga a dizer o que
realmente estamos sentindo e pensando (...) a lamentação é a exposição das
vísceras que inutilmente tentamos esconder(...) lamentação é coisa de crente e
não de incrédulo, é coisa de gente pecadora, mas também humana, demasiado
humana” (Salmo 22; Marcos 15:34)
No dizer de Paul Ricoeur, a lamentação é uma oração de confiança
em Deus, no entanto, uma confiança que é abalada e depois recuperada. Deus
dá-nos, então, a lamentação não só para encontrarmos a esperança, mas também
para nos livrar da incredulidade e do cinismo.
No quarto capítulo, a revelação divina é apresentada
como dando a explicação antropológica adequada
à realidade do homem insuficiente.
“A maravilhosa benção
que a revelação divina reserva para aqueles que a conhecem é a grande
descoberta de que o Deus das Escrituras revela ao homem não somente o
verdadeiro Deus, mas também o verdadeiro homem.”
1 Ninguém pode conhecer-se de modo adequado sem o conhecimento adequado de Deus; ninguém pode conhecer verdadeiramente Deus e ser, ao mesmo tempo, ignorante acerca de si mesmo. Como diz Calvino, no já citado início das Institutas, o conhecimento de Deus abre-nos o entendimento para o nosso auto-conhecimento. O homem só se conhece verdadeiramente depois de conhecer verdadeiramente Deus!
Madureira vai descrever o homem como alma (como um ser faminto por Deus, a fome de Deus é a essência da natureza humana), como tendo um coração (centro da existência humana,o centro do autoengano),
como sendo um ser de carne (sinónimo de fraqueza, existencial, mas também moral), de espírito (um ser vivente, dependente de Deus para viver, do Seu Espírito) e que deve ser orientado pelo texto
bíblico.
No último capítulo, Madureira volta à questão e importância das cosmovisões, acusando os teólogos de deserção.
Acusa-os de traição quando o seu pensamento é controlado por outra coisa que
não o criador; se fui criado para servir a Deus, quem é, na realidade, o senhor
da minha mente?
Para o autor, o teólogo deve buscar o conhecimento de Deus
nos termos que Deus propõe e de acordo com a maneira como ele torna esse
conhecimento possível. O teólogo corre o risco de estar cativo de uma
cosmovisão não cristã. É o temor
a Deus que pode levar o teólogo a ser fiel à Palavra. – Prov. 9:10, o processo de ouvir e aprender a história da salvação opera uma mudança de cosmovisão.
Assim sendo, o teólogo precisa de uma cosmovisão
cristã, sendo que uma cosmovisão não é uma mera construção intelectual, antes
um compromisso do coração (devoção da mente + devoção das paixões).A cosmovisão é, então, as lentes pelas quais vemos o mundo, sendo que não tem de ser consistente do ponto de vista lógico, pode assentar-se em pressupostos falsos. Responde a 4 perguntas: o que sou; onde estou; o que está errado e qual é a solução? A cosmovisão envolve os nossos sentimentos, entendimento e vontade. Para Madureira, as cosmovisões maioritárias exercem ocupação em 3 esferas – jurídica, educacional e mediática.
Logo, a batalha das cosmovisões é uma batalha pela mente das
pessoas.
“A secularização é o resultado da traição dualista da
cosmovisao. Em outras palavras, se, de um lado, os cristãos, traçaram uma linha
para dividir o mundo em 2, do outro, os secularistas assumiram essa linha e
fizeram dela uma espécie de motivo para justificar a irrelevância da cosmovisão
cristã para a sociedade como um todo.”
“A teologia não é uma ciência fundamentada na subjetividade
de um “sentimento religioso profundo”, mas na capacidade racional que temos de
apreender objetivamente a revelação de Deus.”
“Não é uma Palavra que deve se acomodar à mente do teólogo,
mas é a mente do teólogo que se deve dilatar para receber a Palavra.”
O fim da Palavra
não é o conhecimento bíblico e a perícia teológica, antes estas duas coisas são
o meio ordenado para um fim – uma vida radicalmente transformada.