segunda-feira, 20 de abril de 2020

Park Bench/Um Pedaço de Madeira e Aço de Chabouté

Em 2002, a Marvel decidiu apostar num "evento", ´Nuff Said era um desafio às equipas criativas dos títulos mensais, criar uma história sem texto, contar a história somente através das imagens. Lembro-me que fiquei desiludido, mais pela rapidez com que li a minha dose mensal de títulos que comprava do que por outra coisa. Sei que tenho para ali pelo menos quatro títulos abrangidos por esta iniciativa, New X-Men de Grant Morrison, Spider-Man de Straczynski, Daredevil de Bendis e Exiles de Judd Winick. De memória, só me lembro vagamente dos números de New X-Men e de Exiles.
Nos últimos dois anos, temos cá em casa visto vários clássicos do cinema, e temos descoberto alguns clássicos mudos, Aurora de Murnau e Metropolis de Fritz Lang foram os dois que nos marcaram mais até agora, mas poderia alargar o número de títulos de cinema mudo vistos para mais uma dúzia. Chaplin tem um filme sonoro em que descarta o diálogo, por considerar que o som seria coisa de pouca dura. Carreiras terminaram e começaram pelo advento do sonoro no cinema, alguns dos grandes actores do mudo tinham vozes pouco apelativas para o sonoro (Singing in the Rain mostra bem esta mudança de paradigma). A banda desenhada, seja em títulos mensais, em tiras de jornal, cartoons ou graphic novels, tem demonstrado que pode tirar partido da junção entre texto e imagem, mas são muito diversos os exemplos de autores que veiculam a mensagem pretendida ou que conseguem contar a história que desejam usando somente o desenho. Vem-me à mente Quino e os seus cartoons geniais, que tanto usei em aulas. Ando a vaguear entre cinema e banda desenhada, entre cinema mudo e banda desenhada sem texto para falar de Park Bench de Chabouté, uma banda desenhada de 328 páginas que dispensa o texto.


Comecemos pelo título, li Park Bench, na edição inglesa editada pela Faber & Faber. O título original é bem mais expressivo e poético, Un peu de bois et d´acier; a editora brasileira Pipoca e Nanquim traduziu-o sem dificuldades, Um Pedaço de Madeira e Aço. O título poético original assenta que nem uma luva na história de Chabouté, uma história em que a personagem principal é um objecto, ou o espaço adjcente a este, um banco de jardim. Chabouté conta diversas histórias, através de diversas personagens, o tipo que corre no parque e que usa o banco para os seus exercícios diários de alongamentos, o casal de idosos que partilha um bolo, o sem abrigo que bebe uma garrafa ou dorme no banco e o polícia que o multa e escorraça dali, o cão que micta num dos pés do banco, o trabalhador da câmara responsável pela conservação do banco, a senhora que se senta no banco a ler um livro, entre outros. O banco do jardim, um dos objetos mais simples e recursivo do nosso dia a dia dá-nos a passagem do tempo, temporal e meteorológico, e com ela o quotidiano banal de diversas personagens. A preto e branco, em planos diversos, mais ou menos aproximados do banco, Chabouté usa o desenho e as sombras de forma detalhada e expressiva para contar pequenos quadros de pessoas e animais. A expressão das personagens descarta a necessidade de texto, dei por mim a rir ou simplesmente a sorrir com o humor, a ternura e a exasperação das personagens.




Park Bench é um título objectivo, mas como já referi, que descarta a poesia do título original, poesia esta que casa bem com o teor da narrativa descrita graficamente. O livro trata da interacção com um determinado espaço, da vida quotidiana, dos pequenos detalhes que a observação das pessoas permite, o livro, como um bom filme silencioso, ganha e transborda o silêncio nele existente, a palavra como forma de comunicação é aqui supérflua, porque a imagem, o traço, o preto e branco e sombras usam o medium da melhor forma possível. "Uma imagem vale por mil palavras" torna-se realidade nesta banda desenhada. O silêncio das imagens tanto pode ser terno, como ensurdecedor, como a realidade transposta, do casal de idosos que partilha os bolos ou doces ao abrir de uma carta que confirma o tumor.





















Park Bench faz o difícil, fazer de um local pelo qual passamos centenas ou milhares de vezes sem atentarmos para o que está à nossa volta a personagem principal, brincando no fim com a alteração de paradigma, o banco é trocado por um outro mais moderno, mas menos ergonómico, menos familiar, menos prático. As pequenas histórias contadas são-nos familiares, expectáveis e redundantes no seu término, o final é recursivo e xaroposo, mas cai como a cereja em cima do bolo.

Uma das grandes leituras deste ano. 



















quinta-feira, 16 de abril de 2020

Lost Dogs de Jeff Lemire


Vou tentar escrever opiniões curtas sobre algumas banda desenhadas, se conseguir escrever uma por semana fico satisfeito.
Vou, entre outras coisas, escrever muito sobre Jeff Lemire, nenhum outro autor me cativou nos últimos anos quanto Lemire. Acho que entrei no universo criativo de Lemire com Animal Man, na altura gostei, mas não fixei o nome do canadiano, aliás, já li muita da produção de super-heróis de Lemire e não sou adepto fervoroso, Animal Man e Green Arrow destacam-se, ainda que não tenha lido nada do que escreveu para a Valiant, mas foi ao ler Black Hammer que o interesse em Lemire cresceu, haveremos de ter tempo para falar de Black Hammer, mas o que mais me surpreendeu e agarrou nesse universo foi a homenagem, conhecimento e amor de Lemire pelos comics americanos, das diferentes eras, editoras e autores, a forma como isso é destilado num universo de forma coesa, mas caleidoscopicamente, surpreendeu-me, ainda que o início tenha exigido de mim algum esforço. Parafraseando Pessoa, de início estranhei (demorei a perceber a homenagem, teimosamente encarei a obra inicialmente como pastiche), mas depois entranhei.

Lost Dogs é a primeira obra (auto-)publicada de Jeff Lemire e percebe-se isso. As primeiras doze páginas foram fruto de um desafio criado por Scott McCloud, desenhar 24 páginas em 24 horas, o que ficar na página não sai, é um desafio para o criador e talvez isso explique também o aspecto mais cru e “atabalhoado” desta primeira obra de Lemire.
O mais interessante em Lost Dog é descobrir a génese e criatividade do autor canadiano, já há alguns dos temas mais caros a Lemire, a família e os seus relacionamentos como base narrativa, a redenção das personagens, a brutalidade e violência como ambiente em que as personagens se movimentam. Sendo uma primeira obra, datada de 2005, consegue-se perceber claramente a evolução narrativa e artística de Lemire. Um dos pontos fortes de Lemire, e uma das razões porque gosto tanto dele, é a narrativa visual, a passagem de quadrado para quadrado, a forma como veicula a emoção e como a história é contada, aqui essa narrativa visual ainda é imberbe, mas já dá para perceber a competência visual do canadiano.


Sailor é um “gigante” de camisola branca e vermelha, um homem feio e rijo, que encontra na sua família o seu abrigo. Casado, com uma filha e um cão, vive da terra, no campo, onde é feliz. A história inicia-se com esse retrato idílico e avança com a decisão de levar a família a passear à cidade. O tipo de maravilhamento presente em Sunrise (Aurora), a obra prima de Murnau, está presente aqui; mas se em Sunrise Murnau conta a história de um homem que leva a mulher a passear à cidade antes de matá-la para consumar uma traição, reencontrando o amor pela esposa, Lost Dogs faz o caminho inverso, a cidade que reacende o amor em Sunrise é em Lost Dogs a cidade que termina com a família de Sailor. A observação dos navios leva a um ataque nocturno, a filha é morta, a esposa é violada e Sailor é brutalmente atacado e lançado ao mar, rumo a um abismo, maravilhosamente ilustrado na capa.
Resgatado e vendido a um velho, que o atira para um destino de lutas clandestinas, com a promessa de revelar-lhe a localização da esposa, Lost Dogs aposta numa narrativa negra (o preto e branco e o vermelho são as cores usadas, em traço grosso, no estilo - inicial, é verdade - já inconfundível de Lemire) em que a (des)humanidade das personagens, a sua imperfeição, a sua luta por redenção (aqui não tão objectiva como em outros títulos) avançam a trama para o seu desenlace.


Lost Dogs não é a melhor obra de Lemire, longe disso, mas como primeira obra é extremamente interessante, o uso das três cores lembra o uso mais refinado do preto, branco e azul em The Nobody, a arte é hoje mais fluida, a estrutura das páginas mais natural e “cinematográfica”. Mas a “voz” e a visão de Lemire já aqui estão.  Faltará a poesia Lemiriana, o cuidado e atenção ao pormenor, o final mais redentor, como por exemplo em Roughneck, mas Lost Dogs é um excelente ponto inicial (desculpem a redundância) para descobrir Lemire.