Vou tentar escrever
opiniões curtas sobre algumas banda desenhadas, se conseguir escrever uma por
semana fico satisfeito.
Vou, entre outras coisas, escrever muito sobre Jeff Lemire, nenhum outro autor me cativou nos últimos
anos quanto Lemire. Acho que entrei no universo criativo de Lemire com Animal
Man, na altura gostei, mas não fixei o nome do canadiano, aliás, já li muita da
produção de super-heróis de Lemire e não sou adepto fervoroso, Animal Man e
Green Arrow destacam-se, ainda que não tenha lido nada do que escreveu para a
Valiant, mas foi ao ler Black Hammer que o interesse em Lemire cresceu,
haveremos de ter tempo para falar de Black Hammer, mas o que mais me
surpreendeu e agarrou nesse universo foi a homenagem, conhecimento e amor de
Lemire pelos comics americanos, das diferentes eras, editoras e autores, a
forma como isso é destilado num universo de forma coesa, mas caleidoscopicamente,
surpreendeu-me, ainda que o início tenha exigido de mim algum esforço.
Parafraseando Pessoa, de início estranhei (demorei a perceber a homenagem,
teimosamente encarei a obra inicialmente como pastiche), mas depois entranhei.
Lost Dogs é a primeira
obra (auto-)publicada de Jeff Lemire e percebe-se isso. As primeiras doze
páginas foram fruto de um desafio criado por Scott McCloud, desenhar 24 páginas
em 24 horas, o que ficar na página não sai, é um desafio para o criador e
talvez isso explique também o aspecto mais cru e “atabalhoado” desta primeira
obra de Lemire.
O mais interessante em
Lost Dog é descobrir a génese e criatividade do autor canadiano, já há alguns
dos temas mais caros a Lemire, a família e os seus relacionamentos como base
narrativa, a redenção das personagens, a brutalidade e violência como ambiente
em que as personagens se movimentam. Sendo uma primeira obra, datada de 2005,
consegue-se perceber claramente a evolução narrativa e artística de Lemire. Um
dos pontos fortes de Lemire, e uma das razões porque gosto tanto dele, é a
narrativa visual, a passagem de quadrado para quadrado, a forma como veicula a
emoção e como a história é contada, aqui essa narrativa visual ainda é imberbe,
mas já dá para perceber a competência visual do canadiano.


Sailor é um “gigante” de
camisola branca e vermelha, um homem feio e rijo, que encontra na sua família o
seu abrigo. Casado, com uma filha e um cão, vive da terra, no campo, onde é
feliz. A história inicia-se com esse retrato idílico e avança com a decisão de levar
a família a passear à cidade. O tipo de maravilhamento presente em Sunrise (Aurora),
a obra prima de Murnau, está presente aqui; mas se em Sunrise Murnau conta a
história de um homem que leva a mulher a passear à cidade antes de matá-la para
consumar uma traição, reencontrando o amor pela esposa, Lost Dogs faz o caminho
inverso, a cidade que reacende o amor em Sunrise é em Lost Dogs a cidade que
termina com a família de Sailor. A observação dos navios leva a um ataque
nocturno, a filha é morta, a esposa é violada e Sailor é brutalmente atacado e
lançado ao mar, rumo a um abismo, maravilhosamente ilustrado na capa.
Resgatado e vendido a um
velho, que o atira para um destino de lutas clandestinas, com a promessa de
revelar-lhe a localização da esposa, Lost Dogs aposta numa narrativa negra (o
preto e branco e o vermelho são as cores usadas, em traço grosso, no estilo - inicial,
é verdade - já inconfundível de Lemire) em que a (des)humanidade das
personagens, a sua imperfeição, a sua luta por redenção (aqui não tão objectiva
como em outros títulos) avançam a trama para o seu desenlace.
Lost Dogs não é a melhor
obra de Lemire, longe disso, mas como primeira obra é extremamente
interessante, o uso das três cores lembra o uso mais refinado do preto, branco
e azul em The Nobody, a arte é hoje mais fluida, a estrutura das páginas mais
natural e “cinematográfica”. Mas a “voz” e a visão de Lemire já aqui
estão. Faltará a poesia Lemiriana, o
cuidado e atenção ao pormenor, o final mais redentor, como por exemplo em
Roughneck, mas Lost Dogs é um excelente ponto inicial (desculpem a redundância)
para descobrir Lemire.
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