quinta-feira, 16 de abril de 2020

Lost Dogs de Jeff Lemire


Vou tentar escrever opiniões curtas sobre algumas banda desenhadas, se conseguir escrever uma por semana fico satisfeito.
Vou, entre outras coisas, escrever muito sobre Jeff Lemire, nenhum outro autor me cativou nos últimos anos quanto Lemire. Acho que entrei no universo criativo de Lemire com Animal Man, na altura gostei, mas não fixei o nome do canadiano, aliás, já li muita da produção de super-heróis de Lemire e não sou adepto fervoroso, Animal Man e Green Arrow destacam-se, ainda que não tenha lido nada do que escreveu para a Valiant, mas foi ao ler Black Hammer que o interesse em Lemire cresceu, haveremos de ter tempo para falar de Black Hammer, mas o que mais me surpreendeu e agarrou nesse universo foi a homenagem, conhecimento e amor de Lemire pelos comics americanos, das diferentes eras, editoras e autores, a forma como isso é destilado num universo de forma coesa, mas caleidoscopicamente, surpreendeu-me, ainda que o início tenha exigido de mim algum esforço. Parafraseando Pessoa, de início estranhei (demorei a perceber a homenagem, teimosamente encarei a obra inicialmente como pastiche), mas depois entranhei.

Lost Dogs é a primeira obra (auto-)publicada de Jeff Lemire e percebe-se isso. As primeiras doze páginas foram fruto de um desafio criado por Scott McCloud, desenhar 24 páginas em 24 horas, o que ficar na página não sai, é um desafio para o criador e talvez isso explique também o aspecto mais cru e “atabalhoado” desta primeira obra de Lemire.
O mais interessante em Lost Dog é descobrir a génese e criatividade do autor canadiano, já há alguns dos temas mais caros a Lemire, a família e os seus relacionamentos como base narrativa, a redenção das personagens, a brutalidade e violência como ambiente em que as personagens se movimentam. Sendo uma primeira obra, datada de 2005, consegue-se perceber claramente a evolução narrativa e artística de Lemire. Um dos pontos fortes de Lemire, e uma das razões porque gosto tanto dele, é a narrativa visual, a passagem de quadrado para quadrado, a forma como veicula a emoção e como a história é contada, aqui essa narrativa visual ainda é imberbe, mas já dá para perceber a competência visual do canadiano.


Sailor é um “gigante” de camisola branca e vermelha, um homem feio e rijo, que encontra na sua família o seu abrigo. Casado, com uma filha e um cão, vive da terra, no campo, onde é feliz. A história inicia-se com esse retrato idílico e avança com a decisão de levar a família a passear à cidade. O tipo de maravilhamento presente em Sunrise (Aurora), a obra prima de Murnau, está presente aqui; mas se em Sunrise Murnau conta a história de um homem que leva a mulher a passear à cidade antes de matá-la para consumar uma traição, reencontrando o amor pela esposa, Lost Dogs faz o caminho inverso, a cidade que reacende o amor em Sunrise é em Lost Dogs a cidade que termina com a família de Sailor. A observação dos navios leva a um ataque nocturno, a filha é morta, a esposa é violada e Sailor é brutalmente atacado e lançado ao mar, rumo a um abismo, maravilhosamente ilustrado na capa.
Resgatado e vendido a um velho, que o atira para um destino de lutas clandestinas, com a promessa de revelar-lhe a localização da esposa, Lost Dogs aposta numa narrativa negra (o preto e branco e o vermelho são as cores usadas, em traço grosso, no estilo - inicial, é verdade - já inconfundível de Lemire) em que a (des)humanidade das personagens, a sua imperfeição, a sua luta por redenção (aqui não tão objectiva como em outros títulos) avançam a trama para o seu desenlace.


Lost Dogs não é a melhor obra de Lemire, longe disso, mas como primeira obra é extremamente interessante, o uso das três cores lembra o uso mais refinado do preto, branco e azul em The Nobody, a arte é hoje mais fluida, a estrutura das páginas mais natural e “cinematográfica”. Mas a “voz” e a visão de Lemire já aqui estão.  Faltará a poesia Lemiriana, o cuidado e atenção ao pormenor, o final mais redentor, como por exemplo em Roughneck, mas Lost Dogs é um excelente ponto inicial (desculpem a redundância) para descobrir Lemire.

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