segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Regressos

Quando me vi desempregado em 2014, tinha onze anos de docência no currículo. Fazia o que gostava, num contexto simpático, o do ensino superior politécnico. Dava aulas a adultos, uns mais do que outros, mas nos últimos dois anos já o fazia a prazo.
Foram dois anos e meio de desemprego duros, costumo dizer que o desemprego sabe bem nos primeiros dois meses, a partir daí foi uma luta contra o ritual de ir buscar uma folha assinada, a ausência de respostas, com propostas a roçar o patológico e com total falta de respeito para com quem procura emprego. Enfim, é o país que temos. Avancemos.
O ano passado consegui um biscate, este ano o biscate aumentou ligeiramente de dimensão, mas ainda não dá para sobreviver. Mas enfim, volto a dar aulas, num dos sítios onde o fiz durante algum tempo. Com caras conhecidas, ao lado de amigos e amigas. É bom voltar e ser bem recebido, é bom voltar a fazer aquilo que gostamos, é bom voltar a sentir aquela sensação de inadequação.
Hoje, estou em reuniões, amanhã volto à sala de aula.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Bruxa

Sentada, descansando as pernas e a alma, se é que é possível descansá-las, pensava na morte, próxima, tão próxima que lhe sentia o cheiro. Acordou com os gritos.
A sala onde estava fechada era escura, mas iluminada por frechas do telhado, não sabia se era o sol que se descobria ou se era a noite que chegava. Tinham-na deixada inconsciente, fora apanhada por um grupo de populares, que a pontapeara. Por isso afagava as pernas, ainda que todo o corpo estivesse cheio de hematomas, a pele branca era agora arroxeada, como que por milagre a cara não tinha sido atingida, por milagre pensava ela, afinal tinha sido propositado. A morte de alguém é sempre um marco, mas matar uma bruxa tem mais sentido quando se reconhece quem se queima na fogueira. Era esse o modus operandi do vigário, "apanhem-nas, amoleçam-nas, mas não as desfigurem. Todos devem reconhecer uma bruxa".
Afinal o cheiro que sentia era o da lenha, pronta para a queimar e provavelmente a outras.
Chegara à aldeia há 10 anos, fugida da guerra que lhe matara a família. Fora assim que explicara a sua chegada, agora, ali, na penumbra, pensa que não é a guerra que mata ninguém, somos nós, homens e mulheres, toldados pelo medo, pelo ódio, pela violência.
Tendemos a chamar nomes ao que não conhecemos, aprendera desde miúda a arte do herbarium, com a velha avó. Fugida da guerra, atravessou montanhas e rios e teve de aprender uma nova língua. Começou a trabalhar no campo, o suficiente para lhe dar o que precisava, pouco a pouco foi fazendo amigos.
Não é normal uma mulher da sua idade só. Não é normal uma mulher da sua idade tão bela, ainda para mais trabalhando de sol a sol entregue aos caprichos da natureza. Não é normal uma mulher saber tanto de plantas e ervas. É?
Nada disto por si lhe ditaria a sorte funesta. Há dois anos chegou o vigário, homem seco, tanto de carnes como de feitio. Ela reconheceu-o, mas guardou-o para si.  Estava na igreja na primeira missa, a face dele era-lhe familiar, mas não conseguia perceber de onde. Ele lia I Coríntios 13 e quando gritou "Sem amor" ela empalideceu. Há onze anos ouvira aquela mesma voz, comandando um grupo de homens, mandando que estes exterminassem crianças e velhas. Saiu à pressa, sob o olhar de todos.
Naquela noite não dormiu, via a cara da mãe e dos irmãos, do pai já não se lembrava. "Será que o padre se lembra de mim?"
No início pensou que não, que estava incógnita. Talvez o estivesse, talvez o padre tenha perguntado por ela, talvez tivesse sabido de onde ela viera, alguém poderia ter contado o que ela contara quando chegou à aldeia. Deixou de ir à igreja, temerosa, temendo o homem, não o Senhor.
Dois meses antes, a "caça às bruxas" começou , pensou em ir-se embora, mas poucas vezes se cruzara com o diácono e nas poucas vezes em que acontecera ele tinha sido simpático, nada lhe indicava que ele sabia quem ela era. Fugir, outra vez? Para onde?
Da rua chegam-lhe gritos, urros, o murmurar de uma multidão. A porta abre-se, reconhece o homem que a agarra com maus modos, ódio e talvez temor.
"Jan, não. Porquê?"
Ele agarra-lhe nos cabelos, puxa-os, quase que a vira ao contrário e puxa-a pela porta. Consegue perceber, entredentes, a palavra bruxa.
Esperneia, grita por misericórdia, mas é levada, com a ajuda de mais dois homens, em direcção de uma pilha de madeira, com um tronco no meio. Consegue ver, de relance, duas fogeiras já acesas, com dois corpos, parecem duas bonecas, queimadas. O cheiro a carne assada dá-lhe voltas ao estômago, num misto de fome e agonia.
Atam-na à fogueira, o som é ensurdecedor. Os gritos que, por momentos, pensou que fossem só dela são de toda a aldeia. Crianças, mulheres, velhos, homens, gritam como animais, desejando a morte e o fogo dos infernos.
Chora, grita por clemência, diz-se inocente.
Um homem pequeno que não conhece aproxima-se com uma tocha acesa, que aproxima da madeira. Começa a sentir o calor das labaredas, tenta soltar-se, "Que Deus tenha piedade da tua alma", ouve o padre dizer na sua voz de homicida, mas de ar compungido. O povo cala-se, benze-se e parece olhar para os céus, pedindo a misericórdia divina.
Um troar enorme parece abrir a terra ao meio, depois, por uma milésima de segundo, um raio ilumina ainda mais o dia que nasce.
Perante o ar compungido do público, começa a chover sem que haja nuvens.
"Bruxa! BRuxa! BRUxa! BRUX..."

As chamas apagam-se, a praça fica vazia. Ela pensa na morte e em Deus, engalfinhada pelo fumo negro da madeira molhada.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Owen Rules!

So much as we see the love of God, so much shall we be delighted in Him. Every other discovery of God, without this, will but make the soul fly from Him; but if the heart be once much taken up with this eminency of the Father´s love, it cannot choose but be overpowered, conquered and endeared unto Him.
(...)
Exercise your thoughts upon this very thing, the eternal, free and fruitful love of the Father, and see if your hearts be not wrought upon to delight in Him.
(John Owen)

Owen volta a este exercício vezes após vezes, num livro sobre a tentação, demora algum tempo a relembrar-nos que muitos dos nossos pecados são internos, de pensamento. A resposta é similar, pensem nas coisas do alto, quando perceberes que a tua mente, os teus pensamentos, a tua imaginação te leva a pecar, pensa nas coisas do alto, no amor de Cristo, na vida, morte e ressurreição do Unigénito do Pai. Esse pensar, meditar nas coisas do alto, esse relembrar do preço da salvação deve levar-te à ação.
Simples, sem ser simplório, fácil, mas tão olvidado.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Vista Parcial da Noite

Um dos livros encomendados que não chegou a ser comprado no Brasil, pelo Carlos, foi Vista Parcial da Noite de Luiz Ruffato, encontrei-o, surpreendentemente numa FNAC a preço da uva mijona. 
Vista Parcial da noite é o terceiro volume, de cinco, de uma série intitulada Inferno Provisório, uma série de romances que retrata a classe operária entre a década de 50 do século passado e o início deste. Tinha lido uma lista de livros que o considerava como um dos livros recentes da literatura brasileira a ler, pela temática parecia-me um romance neo-realista, mas enganei-me, para o ser precisava de uma visão (e função) politizada, que não tem, pelo menos de forma direta e objetiva. 
Vista Parcial da Noite não é um romance per si, mais um livro de contos. Ruffato diz que teve dificuldade em encontrar a forma para a série. Não queria escrever um romance nos moldes tradicionais, que descreve como uma forma de e para expressar uma visão do mundo burguesa. Não queria escrever uma série de romances sobre o proletariado numa forma burguesa, por isso, foi protelando a publicação de Inferno Provisório. 
Quando lançou Eles eram muitos cavalos, a editora não o viu como um romance, mas como um livro de contos, e livros de contos não vendem. Com o sucesso do livro e os prémios que ganhou, Ruffato achou que a forma podia ser usada com sucesso para Inferno Provisório. 
Desta forma, Vista Parcial da Noite não segue um determinado número de personagens do início ao fim, a personagem principal é a classe operária, nas suas diferentes concretizações. Assim, são onze histórias, que nos mostram as misérias e agruras num sem número de cenários em Cataguases, uma mãe abandonada pelos filhos, um jovem abalado pela notícia ouvida na rádio - Cataguases vai ser bombardeada pela Lutwaffe, a homenagem às antigas Rainhas do Carnaval, o nascimento e fim de um clube de futebol, entre outras tantas vivências doridas. Ruffato domina o ofício da escrita, esta é multiforme, viva, rápida, depurada, pede uma leitura atenta e demorada. Pessoalmente, foi uma surpresa. A primeira página chocou-me e animou-me ao mesmo tempo. A ausência, por vezes, da pontuação requerida, a profusão de vozes, a descrição multiforme agarrou-me desde o início, mas não sabia ao que ia. Tentei nos primeiros três contos encontrar pontos de contacto, personagens, para ser mais explícito, sem grande sucesso. Compreender a estrutura do romance enquanto conto e a classe operária enquanto personagem coletiva foi parte do prazer da leitura.

Reduzir o prazer que tive ao ler Vista Parcial da Noite à forma é redutor (desculpem-me a redundância). Dizê-lo seria reduzir o livro à forma (exterior), os contos são narrativamente fortes, mas a trama é suficiente para que os mesmos permaneçam. No entanto, a estrutura interna do romance, deduzo que da série, a forma como vai desvelando a realidade social e familiar, emocional e psíquica das personagens, faz deste pequeno livro um enorme prazer. 
Escrevia há dias que há autores que leio somente pela escrita, deixando a trama para segundo plano, Ruffato junta as duas coisas, de uma forma quase nova. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Ciclismo

Para o Tiago Cavaco, que me pediu o texto
Para o Timóteo Falcoeiras, por razões explicadas abaixo

Como é que um tipo anafado, adiposo ou corpulento, escolham vocês, sem qualquer capacidade de equilíbrio num veículo de duas rodas se torna fã de ciclismo? O desemprego tem um papel preponderante, mas não explica tudo.
Comecemos lá atrás, na infância. Os progenitores decidiram comprar uma bike, como era comummente conhecida na altura, ao irmão mais novo, passando por cima do fator etário. Fiquei chateado com o facto de não me ter sido dada a mim? Não! Na altura, como hoje, preferia um (vários, na verdade) livro a algo que se assemelhasse a exercício físico. O que não quer dizer que não tenha experimentado a bicicleta/bike do meu irmão. Conto dois episódios, marcados indelevelmente na minha memória.

A Paio Pires dos anos oitenta e noventa era marcada por campo e mato, onde hoje existem edifícios junto à Igreja Evangélica, na altura era campo e estradas de areia, polvilhadas por silvas. Um grupo de miúdos andava para a frente e para trás e era o terreno ideal para o meu irmão andar na bicicleta nova. Eu também quis. Ora, eu, em cima de uma bicicleta, sou o mais parecido com um Chaplin, Buster Keaton ou Tati em cima de uma bicicleta, volante para um lado, volante para o outro, mas sem a destreza e finesse destes. Resultado? Uma queda espetacular em cima das silvas. De um lado, o irmão mais novo agastado com as marcas que a bicicleta nova ostentava; do outro, o irmão mais velho, silvado por todo o corpo e roupa.

Montes Juntos, terra do avô, aldeia alentejana e raiana, próxima do Alandroal. Numa tarde quente de verão, o meu irmão, eu e o meu primo brincamos na estrada deserta, polvilhada de poias de vaca, a bicicleta passa de mão em mão. Subimos a estrada, que desce levemente até perto da entrada da casa de um tio, é a única casa nessa rua, do lado contrário, um muro acompanha toda a rua. É a minha vez, pego na bicicleta, monto, subo esforçadamente a rua e desço. Mais uma vez, a minha destreza faz com que a bicicleta vire para a direita e para a esquerda, ebriamente. Infelizmente, à minha frente, de costas para mim, caminha uma anciã, de roupas negras, baixa e lenta, segura a caminho da venda, ignota do veículo na sua direção. Relembro o ar assustado e divertido do meu irmão e do meu primo, imagino o meu ar. Em tempos pré GTA, falho a velhinha por uns míseros centímetros, batendo violentamente contra o muro, que me acolhe na sua dureza, impávido e sereno. Saio incólume, a bicicleta não tanto. Agastado, novamente, o meu irmão, proibiu-me de voltar a andar nela, pedido prontamente obedecido.

A distância entre mim e as bicicletas efetiva-se, durante anos estas desaparecem dos meus pensamentos, vou vendo uma etapa da Volta a Portugal e da Volta a Espanha aqui e acolá, sem grande ânimo ou gosto particular. Lá no fundo, uma inveja e admiração profundas por tipos que não só conseguem andar nelas, mas fazer daquilo carreira, correndo horas e horas em terreno plano ou íngreme.
Há quatro ou cinco anos, no Pinhal Novo, no terreno dos avós da Sara, nas tardes indolentes de verão, chapinhadas com a água do tanque, descanso o corpo no sofá e acompanho algumas etapas do Tour. Nasce ali qualquer coisa.
Como dizia, com o desemprego, em 2014, que aconteceu em Abril, tenho mais tempo livre e consigo sentar-me frente ao televisor a ver o Tour, a filha desespera, são duas ou três horas em que monopolizo o televisor, a ver uma valente "seca", "pessoas a andar de bicicleta!" A admiração transforma-se em prazer e vou acompanhando as diferentes provas que os canais da Eurosport transmitem. Não consigo ouvir outros comentadores, em canais nacionais, o pedantismo e falta de humor chocam com a familiaridade, humor e know how de Olivier Bonamici, Paulo Martins e Luís Piçarra. O pseudo-profissionalismo cinzento choca com a amizade e familiaridade destes três comentadores, que nos recebem como que amigos em sua casa. 

"Seca" deve ser o adjetivo que aqueles que me conhecem e falam comigo acerca de ciclismo mais aventam para descrever uma das minhas atividades favoritas, ver ciclismo. "Não sei como consegues!"
O ciclismo para mim é um misto de emoções e experiências, de um lado, o aspeto turista, os postais animados, polvilhados de castelos, palácios, montanhas, lagos, piscinas naturais, gado e pássaros; de outro lado, o trabalho em equipa, os vencedores das provas de World Tour de três semanas não são nada sem a equipa, escolhida a dedo, que vai trabalhando em prol deles, muitas das vezes sem que o foco do holofote caia sobre estes corredores. Alguém que acompanhe minimamente as provas de ciclismo sabe o nome de alguns dos grandes ciclistas, mas ignora o nome dos que fazem o trabalho de "sapa". Esse é um dos aspetos que mais me fascina no ciclismo, um trabalho de equipa em prol de um corredor, de uma estratégia, de um fim. O esforço titânico de manter um colega em corrida, por vezes, em esforço mútuo, para que ele chegue ao fim em condições de ganhar ou a etapa ou a corrida.  A forma desinteressada como depois do trabalho feito se levanta o pé, diminuindo a velocidade, consciente do trabalho feito. 
Por outro lado, o ciclismo assemelha-se a um jogo de xadrez com pessoas montadas em bicicletas, quando atacar, quando defender a posição, quando impedir uma fuga? O Tour deste ano foi um bocadinho uma seca, porque o trabalho da Sky foi tão bom que impediu grandes surpresas entre os candidatos à vitória final, ninguém quis arriscar com medo do que lhe pudesse acontecer e Froome ganhou sem grandes dificuldades, mesmo tendo corrido a pé, à espera de uma bicicleta, depois de uma queda numa das etapas. 


Há outra coisa, mais maliciosa, que me excita, as quedas. Não têm piada nenhuma, algumas são mortais ou perigosas o suficiente para acabar com a temporada ou carreira de um ciclista, mas são mais um condimento espetacular de um desporto que consegue, por causa delas, ser mais imprevisível do que outros.


No entanto, o ciclismo não se limita, para mim, às transmissões televisivas, vou lendo livros, revistas e artigos sobre ciclismo. Uma das coisas que mais me surpreendeu, inicialmente, foi a capacidade e destreza de alguns autores a escreverem sobre ciclismo, a descrição das etapas, por exemplo, Richard Moore em Étape, consegue ser um mimo literário, a capacidade de nos emocionar, ver o que não vimos, comparar com os vídeos no You Tube; a descrição psicológica e emocional dos ciclistas em The Yellow Jersey Club de Edward Pickering, tem aumentado o meu amor e respeito pela modalidade. Há um livro que guardo na minha coleção com fervor e devoção, Legends of the Tour de Jan Cleijne, um livro de BD, com a história do Tour, brilhantemente desenhado e com o fervor próprio de um amante e praticante amador da modalidade. 


Mas o ciclismo não é feito de vitórias somente, Lanterne Rouge, um livro de Max Leonard, relata as vivências e derrotas dos lanternas vermelhas na prova francesa. Um desporto que dá atenção aos vencedores, mas também aos vencidos, muitas vezes, como já escrevi, responsáveis pelas vitórias dos líderes de equipa. 

E o doping? "Eles são todos drogados.", dizem-me amiúde. Lembro-me de ver, admirado, Armstrong a subir montanhas como se de uma descida se tratasse. Passo ao lado, claro que a realidade é muitas vezes negra, muitos correram ao longo das décadas dopados, mas não querendo enterrar a cabeça na areia, é algo a que não dou importância, já li um ou dois livros que tratam especificamente sobre essa questão, mas parece-me pornografia. Tratam do assunto, mas encontram em Lance Armstrong o bode expiatório, chafurdam nele e ignoram o estado calamitoso do desporto nessas épocas. 
Vou confiando, quiçá infantilmente, nas medidas anti-doping e deliciando-me com a competição ao longo do ano. As provas de um dia, de três ou cinco, as grandes provas de três semanas, as provas específicas, como o Paris-Roubaix - o inferno do norte deliciam-me, a mim que não consigo andar em cima de uma bicicleta sem a espatifar ou quebrar alguns ossos. 
Um paradoxo, este, semelhante ao de tantos que se sentam num sofá ou cadeira de café, a ver 22 tipos atrás de um bola, admirados com as fintas e os golos, sem conseguirem correr cinco minutos, fazer uma trivela ou dar 3 toques consecutivos numa bola.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Rua da amargura


Andamos por aqui e por ali,

sem saber bem porquê.
Somos levados pela melancolia,
pelo desespero,
toldados pela tristeza.
Encontraste-me ali,
quieto e só,
parado e cinzento.
Talvez tenhas pulado, falado muito,
talvez,
talvez tenhas dançado, gritado,
talvez,
mas foi o teu sorriso que me fez sair
da rua da amargura.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Tu és louvado
Ontem, hoje e
Eternamente.
Tu és louvado
Pela tua criação.
Tu és louvado
Por um povo por
Ti criado. Tu és
Louvado ontem,
Hoje e eternamente.

Porque ouviste
Dos altos céus
O clamor perdido,
Enviaste Cristo
Para libertar
O condenado.

Tu és louvado
Ontem, hoje e
Eternamente.
Tu és louvado
Pelos libertos.
Tu és louvado,
Por um povo por
Ti resgatado,
Ontem, hoje e
Eternamente.

Baseado nos v.18-22 do Salmo 102

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Cinzas do Norte

Não há livros iguais e atrevo-me a dizer que não há leituras iguais. Há autores que leio mais pela escrita do que pela história narrada, o estilo e o domínio da palavra valem mais do que outra coisa (Baptista-Bastos, Ruben A. - por exemplo). Há leituras que são sôfregas, outras que demoram. Há leituras que me esgotam, outras que parecem uma barra energética. Enfim, paremos com comparações tolas, não há uma forma de se efectuar a leitura em nós. Essa é a sua beleza.
O outro livro que me trouxeram do Brasil foi Cinzas do Norte, de Milton Hatoum. E a experiência não podia ser mais diferente da de Que fim levou Juliana Klein?
Se o romance de Marcos Peres me cativou pela energia da linguagem, pela estrutura desestruturada (pelos aspectos pós-modernistas, internos e externos), pelo jogo constante entre livro e leitor, a obra de Milton Hatoum obrigou-me a mudar de agulhas, uma estrutura mais clássica, um outro ritmo.



Cinzas do Norte, terceiro romance de Milton Hatoum, passa-se, em grande medida, na zona de Manaus, no pós-guerra. (Rai)Mundo é um jovem rico, em revolta contra o pai, Trajano Mattoso. Acompanhamos a amizade de Mundo com (O)lavo, órfão que vive com os tios. Mundo quer ser artista, contra a vontade do pai, numa família de conveniência. É um "dramalhão" familiar e social. 
É um romance sobre relacionamentos e as consequências deles, sobre o papel da arte e da economia na arte; é um romance "histórico", retratando a história de Manaus (e consequentemente do Brasil) nos anos 60 e 70 do século passado, um romance da desilusão da vida, da precariedade desta.

Mundo é um jovem que tem tudo, mas que quer a arte como vida, Lavo é um jovem que nada tem e alcança o sucesso nos estudos. A amizade entre os dois desnuda as relações entre os diversos membros das suas duas famílias, relacionamentos marcados pela posição social, pela força do dinheiro e do amor, pelas escolhas, passadas e presentes. A narrativa principal é ampliada por cartas do tio de Lavo (Ran) a Mundo e por uma última carta que Mundo deixa a Lavo.

A força principal do romance é a descrição dorida das famílias, um retrato cru e amargo. 
De um lado a família de Mundo. Trajano Mattoso, um latinfundiário amazónico, constrói o seu império baseado na exportação de juta e na exploração humana, expiadas pelos presentes esporádicos que dá aos que trabalham na sua propriedade. Autoritário, herdeiro de uma lógica de trabalho única e enriquecimento, quer fazer do filho um retrato de si e do seu pai, não aceita divergências no trilho por ele idealizado. Para Trajano, as amizades políticas, as conquistas sexuais, o conhecimento da economia e do negócio familiar são o que requer do seu filho, por isso não compreende a revolta do herdeiro e não consegue lidar com ela de uma forma que não seja autoritária e violenta. Mundo sonha ser artista e assistimos ao longo do romance à sua luta e revolta contra um pai que não compreende e contra um estilo de vida a que tenta fugir e que usa para fugir. Alícia parece odiar o marido de uma forma patológica, presa num casamento sem amor por amor ao filho e ao estilo de vida que o primeiro lhe proporciona. 
Do outro, a família de Lavo, futuro advogado, melhor amigo de Mundo, narrador do livro. Órfão, vive com Raimunda, sua tia, que sustenta a casa (Lavo, o tio Ranulfo e os amigos bêbedos deste) como costureira. Ran(ulfo) não tem um trabalho fixo, a menos que encaremos a vida indolente como o seu emprego, vida marcada por biscates, mulheres e bebida, que tem encontros amorosos com Alícia, relacionamento iniciado antes do casamento desta com Trajano.

Cinzas do Norte é um livro sobre miséria, sobre a miséria económica e social (mesmo no meio da riqueza), política, familiar, em última instância, humana. É um livro triste por isso, mas ao mesmo tempo belo. O vazio em que as personagens se encontram ou colocam parece definido, há pouca capacidade para fugir a esse destino, as tentativas sucedem-se, mas parece que as escolhas só confirmam o triste fado delas. Em última instância, não é o sangue que aproxima as personagens de Cinzas do Norte, elas vão se afastando afectiva, mas também geograficamente. 
Se o retrato da vida familiar é cru, não menos realista e acre é o retrato da vida política e social dessa Manaus retratada e do Brasil em última instância, os jogos de poder, a destruição do património natural e histórico em virtude do "desenvolvimento".

Concluindo, se no livro de Marcos Peres o título é uma pergunta e de algum modo o mote/convite para o leitor o ler, o título deste livro de Hatoum funciona como uma  leitura final e poética (quase um epitáfio) do mesmo. 
Altamente recomendável, editado em Portugal pela Cotovia. Eu li na edição brasileira da Companhia das Letras. 


terça-feira, 6 de setembro de 2016

Que fim levou Juliana Klein?

O meu conhecimento de literatura brasileira contemporânea é limitado, assim de repente, li Dráuzio Varela, Ferréz, Otavio Frias Filho, Marçal Aquino, Rubem Fonseca, Chico Buarque e pouco mais, se a memória não ajuda é porque não marcou, o que pode ser injusto, mas esse é o problema da memória. 
Aproveitei um amigo vir do Brasil e fiz uma lista de quatro livros, ele conseguiu trazer dois livros e a inveja de me enviar fotos de um sebo onde comprou um deles.
Escrevo hoje acerca de um deles, o segundo romance de Marcos Peres.


Que fim levou Juliana Klein é um policial filosófico passado em Curitiba, que tem como centro a rivalidade entre duas famílias alemãs de docentes universitários (os Koch e os Klein) de duas das universidades de Curitiba (os Koch na PUC e os Klein na UFPR). O romance é composto pelos "ditos e os delírios" de um paciente, que se encontra numa clínica psiquiátrica. Sendo um policial há mortes a rodos, mortes que põem a descoberto a história e conflitos entre as duas famílias e que deixam o delegado Irineu de Freitas de candeias às avessas. Mas a narrativa para além de ser narrada por um paciente clínico, delirante, que só saberemos quem é no final do romance, é também desestruturada temporalmente. Os acontecimentos datam a 2005, 2008 e 2011 e são narrados não linearmente. E este é um dos aspectos vencedores do romance, ou seja, se os acontecimentos já são narrados de um ponto de vista subjectivo, não havendo a certeza de veracidade de tudo o que é contado, a construção e interpretação dos mesmos também dependerá do próprio leitor, um intérprete meio perdido que tentará deslindar o que aconteceu, chegando ao clímax do romance onde ele próprio encarna o papel de investigador, tendo a seu cargo a escolha de uma das três conclusões aventadas pelo coligidor.

As desavenças entre as duas famílias, que começam na Alemanha e continuam no Brasil, são diversas, há razões humanas, filosóficas e amorosas.  As divergências filosóficas estão no centro dos conflitos,  mas a avaliação por parte do leitor e do investigador nunca é final, porque novos dados vão sendo dados e outros descartados. 

Que fim levou Juliana Klein? foi uma leitura rápida e a roçar o patológico. 

O humor do livro é delicioso, há piadas que navegam o livro todo, como a contratação de um treinador pela quarta vez pelo Atlético Paranaense, carne para canhão, a direcção mesmo convencida de que o homem não é grande coisa e que mais tarde ou mais cedo o despedirá contrata-o - "Ver no passado o futuro também é coisa da página de esportes da Gazeta". 

Os capítulos curtos e aparentemente simples são precedidos pelo prefácio, uma cronologia de acontecimentos relativos aos Koch e Klein e pela árvore genealógica das duas famílias. Demorei algum tempo a ambientar-me e a atribuir a importância devida ou não a estes dois últimos.

Os diálogos são um dos aspectos vencedores do livro, aliados à descrição e espessura psicológica das personagens. A ambiência e relacionamentos entre as personagens pareceram-me a início básicos, fúteis, não muito verosímeis, mas à medida que ia lendo ia ficando cada vez mais convencido com a estrutura narrativa e a complexidade psicológica das personagens, nomeadamente do delegado Ireneu, a sua personalidade e descida aos infernos, o relacionamento com os Klein e as perturbações consequentes na investigação humanizaram-no e deram-lhe verosimilhança. Não acho que o livro seja um romance policial negro por definição, mas Ireneu entra nesse universo com distinção. 

Há aspectos culturais e literários que passeiam pelo livro sem percebermos a sua real importância num primeiro momento, a alusão a Romeu e Julieta vai habitando o nosso subconsciente como uma explicação (razão?) para determinados acontecimentos, mas somos bombardeados por excertos de A Divina Comédia de Dante, pelo conceito Nietzcheano do eterno retorno, e por porta-chaves do Sponge Bob.

Concluindo, gostei bastante deste livro, em primeiro lugar pela estrutura narrativa, que sendo arriscada é vencedora. Funciona como a estrutura de Pulp Fiction, se a colocarmos pela ordem, como sugere a determinada altura o Prefácio, a narrativa perde força, a "piada" do livro está na construção e compreensão que vamos fazendo; por outro lado, se o clímax dos romances policiais está na sua objectividade, o final de Que fim levou Juliana Klein? é tão subjectivo quanto possível, podendo até haver outras resoluções mais óbvias e coerentes. E aí está uma das forças do livro, colocar-nos na posição de investigador e indagar sobre o que lemos, há informações "subliminares" que não são encaixadas nas versões finais e que fazem parte da avaliação que o leitor vai fazendo. Finalmente, as surpresas ao longo da leitura, ainda só o li uma vez e, como disse, rapidamente, mas imaginava o paciente outra personagem, o que influi na leitura dos acontecimentos e narrativa.
Concluindo, um verdadeiro e bem sucedido Tour de Force. 
Tenho de arranjar o primeiro romance de Marcos Peres!

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Acordo e me levanto,
porque tu me sustentas.
Clamo a ti, Tu me ouves, e respondes
Aos meus suspiros.

A Ti clamo, ouves o meu choro,
também a minha alegria.
Tu me conheces, a minha vida,
As minhas circunstâncias.

Ajuda-me a depender de ti,
a orar, a clamar, adorando-te.

Guia-me na tua justiça,
mantém-me fiel nas tormentas,
mas também quando azul é o céu.
É a tua benignidade que me sustenta.

Tu és o meu escudo,
em ti me quero gloriar,
És Tu quem levanta a minha cabeça,
quero orar.

Ajuda-me a depender de ti,
a orar, a clamar, adorando-te.

Tu salvaste-me, adotaste-me,
Quero ser uma pedra viva,
das águas vivas beber, 
reconhecer a voz do Bom Pastor.

Ajuda-me a depender de ti,
oro, clamo, ajuda-me a depender de ti, adorando-te.

(Baseado nos Salmos 3 e 5)

Teóforo

"Je suis Charlie." A frase encheu as walls, twitters e mentes um pouco por todo o mundo. O ataque selvático na sede do Charlie Hebdo e outros que o seguiram (o "mais recente" em Nice) acordaram-nos para o perigo renovado dos extremistas islâmicos e imbuíram-nos de um espírito de identificação com as vítimas. O que me choca é a forma unidimensional como continuamos a nos condoer com todo e qualquer ataque perpetrado no ocidente e a ignorar (mediática e socialmente) os ataques para além da cortina ocidental. As 200 adolescentes de Chibok pouco mais são do que um rodapé jornalístico, raptadas há mais de dois anos (apareceram nos jornais há cerca de três semanas, por causa de um vídeo realizado pelo Boko Haram!). Os ataques no Iraque, na Síria, no Líbano, em diversos países africanos são quase ignorados pelos media ocidentais. Os raptos e mortes de cristãos em países muçulmanos passam ao lado da nossa sociedade, cultura e órgãos de comunicação. Há um valor intrínseco dado à nacionalidade e religião de cada um, consciente ou inconscientemente. A morte de inocentes, a barbárie primitiva dos terroristas, a difícil coabitação entre a nossa cultura ocidental pós-moderna e todas as religiões e extremismos religiosos são questões com as quais te(re)mos de lidar diariamente.

Por isso acho interessante (complicado e difícil) ler Inácio de Antioquia, a cerca de dois mil anos de distância, neste contexto de terrorismo, de defesa das liberdades ocidentais, de reacção/inacção destas aos ataques terroristas.
Inácio era cristão, numa época em que sê-lo poderia levar à morte, sancionada pelo "Estado". Andar no Caminho não era sinónimo de riquezas, prosperidade e tudo o mais que o coração humano anseia. Ser cristão era sinónimo, muitas das vezes, de sofrer perseguições, apedrejamentos, prisões, de migrações forçadas, de morrer no Coliseu. Até Constantino, estes fins era mais comuns em algumas zonas do império do que noutras, mas comuns em todo o Império. Os "apóstolos" e defensores da teologia de prosperidade modernos deviam ler livros de história, mas se não lêem a Bíblia, estou a sonhar demasiado alto! Inácio é preso por volta de 107 dc e terá morrido entre 110 e 115 dc, foi levado de Antioquia, onde era o pastor/bispo da igreja, até Roma, onde morreu. Deixou-nos sete cartas, não muito longas - a Policarpo, aos Efésios, aos Magnésios, aos Romanos, aos Esmirniotas, aos Filadelfos e aos Trálios.

Nas suas cartas é fácil perceber duas oposições distintas, mas perniciosas, com que a Igreja se debatia. De um lado, tentava-se acrescentar ao cristianismo o legalismo judaico, em suma, acrescentar a Cristo a lei e os seus rituais; do outro lado, o gnosticismo, nomeadamente, o docetismo, que defendia que Jesus tinha vindo não em carne, mas somente em aparência de corpo físico (em oposição a II Jo.7 e I Jo. 4:2, por exemplo). 

Se porém, como afirmam alguns que são ateus, isto é, sem fé, Ele só tivesse sofrido aparentemente – eles é que só existem aparentemente – eu por que estou preso, por que peço para combater com as feras? Morro pois em vão. Estaria então a mentir contra o Senhor. (Aos Trálios)

Filhos que sois da luz da verdade, fugi da cisão das más doutrinas. Onde estiver o pastor, segui-o, quais ovelhas.

Pois muitos lobos, aparentemente dignos de fé, apanham, através dos maus prazeres, os atletas de Deus. Se porém permanecerdes unidos, não acharão lugar entre vós.

Se alguém seguir a um cismático, não herdará o reino de Deus; se alguém se guiar por doutrina alheia, não se conforma com a Paixão de Cristo.

Se, no entanto, alguém vier com interpretações judaizantes, não lhe deis ouvido. É melhor ouvir doutrina cristã dos lábios de um homem circuncidado do que a judaica de um não-circuncidado. Se porém ambos não falarem de Jesus Cristo, tenha-os em conta de colunas sepulcrais e mesmo de sepulcros, sobre os quais estão escritos apenas nomes de homens. Fugi pois das artimanhas e tramóias do príncipe deste século, para que não venhais a esmorecer no amor, atribulados pela sagacidade dele. Todos vós, porém, uni-vos num só coração indiviso.


«Apegai-vos ao Bispo, ao Presbitério e aos Diáconos!» Alguns desconfiaram que eu assim falava, porque sabia da separação de diversos deles. No entanto, é-me testemunha Aquele, por quem estou preso, que por intermédio de homem carnal não vim a saber coisa alguma. O Espírito é que mo anunciou: Nada façais sem o Bispo! Guardai vosso corpo como templo de Deus! Amai a união! Fugi das discórdias! Tornai-vos imitadores de Jesus Cristo, como Ele o é do Pai!


O Evangelho constitui mesmo a consumação da imortalidade. Tudo se reveste de grande importância, se confiardes no Amor. (Aos Filadelfos)

Não sejais enganados por doutrinas estranhas, nem por velhas fábulas, as quais são inúteis, pois se ainda vivemos segundo a Lei dos judeus, devemos reconhecer que não recebemos a graça. 

Se, então, aqueles que eram educados na antiga ordem das coisas se apossaram da nova esperança, não mais observando o sábado, mas observando o Dia do Senhor, no qual também a nossa vida foi libertada por Ele e por Sua morte – alguns negam que por tal mistério obtemos a fé e nele perseveramos para que ser contados como discípulos de Jesus Cristo, nosso único Mestre – como seremos capazes de viver longe Dele, cujos discípulos e os próprios profetas esperaram no Espírito para que Ele fosse o Instrutor deles? Era Ele que certamente esperavam, pois vindo, os libertou da morte.

É absurdo professar Cristo Jesus e judaizar. O Cristianismo não precisa abraçar o Judaísmo, mas o Judaísmo deve abraçar o Cristianismo, para que toda língua possa professar a companhia de Deus.

Amados: estas coisas [que vos escrevo] – não que eu saiba algo sobre o vosso comportamento, mas por ser inferior a vós – tem por objectivo preveni-los para que não sejais fisgados pelos anzóis da vã doutrina, mas para que possais conquistar a segurança plena a respeito do nascimento, paixão e ressurreição que ocorreram na época do governo de Pôncio Pilatos, sendo verdadeiro e certo que tais eventos foram efectuados por Jesus Cristo, nossa esperança, de quem jamais possais ser afastados. (Aos Magnésios)

De que me vale um homem – ainda que me louve – se blasfema contra meu Senhor, não confessando que Ele assumiu carne? Quem não o professa negou-O por completo e carrega consigo seu cadáver (Aos Esmirniotas)


Condenado à morte, Inácio decide morrer como mártir para provar a sua fé ao seu rebanho e como sacrifício de louvor a Cristo, Seu salvador. Essa é a principal dificuldade na leitura de Inácio, a defesa do seu martírio, um anseio palpável pela morte, como prova da sua fé e derrota prática dos legalistas e docetistas. 

Não quero que procureis agradar a homens, mas que agradeis a Deus, como de fato agradais. Nem eu terei jamais igual oportunidade de chegar a Deus, nem vós, caso calardes, jamais haveis de ligar vosso nome a obra melhor. Pois, se calardes a meu respeito, serei palavra de Deus; se porém amardes minha carne, não passarei de novo a ser senão uma voz. Não queirais favorecer-me, senão deixando imolar-me a Deus, enquanto há um altar preparado, para formardes pelo amor um coro em homenagem a Deus e cantardes ao Pai em Jesus Cristo, por que Deus se dignou conceder de o bispo da Síria encontrar-se no Ocidente vindo do Oriente. É maravilhoso o ocaso: vir do ocaso do mundo em direção a Deus, para levantar-me junto a Ele.

 Pedi em meu favor unicamente a força exterior e interior, a fim de não apenas falar, mas também querer, de não apenas dizer-me cristão, mas de me manifestar como tal. Pois, se me manifestar como tal também posso chamar-me assim e ser fiel, na hora em que já não for visível para o mundo.

Sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo.

Perdoai-me: sei o que me convém; começo agora a ser discípulo. Coisa alguma visível e invisível me impeça que encontre a Jesus Cristo. Fogo e cruz, manadas de feras, quebraduras de ossos, esquartejamentos, trituração do corpo todo, os piores flagelos do diabo venham sobre mim, contanto que encontre a Jesus Cristo.

Maravilhoso é para mim morrer por Jesus Cristo, mais do que reinar até aos confins da terra. A Ele é que procuro, que morreu por nós; quero Aquele que ressuscitou por nossa causa. Aguarda-me o meu nascimento. Perdoai-me, irmãos: não queirais impedir-me de viver, não queirais que eu morra.

Meu amor está crucificado e não há em mim fogo para amar a matéria; pelo contrário, água viva murmurando dentro de mim, falando-me ao interior: Vamos ao Pai! Não me agradam comida passageira, nem prazeres desta vida. Quero pão de Deus que é carne de Jesus Cristo, da descendência de Davi, e como bebida quero o sangue d’Ele, que é Amor in­corruptível. (Aos Romanos)


"O que ele diz, ele o diz sobre si mesmo como alguém que está indo para a morte porque é um Cristão." William Weinrich, citado por Michael Haykin - Redescobrindo os Pais da Igreja.

Onde alguns vêem já uma estrutura católica na igreja do segundo século, acho que podemos ver a importância da liderança espiritual da igreja face aos ataques à fé, bem como a importância da comunhão e unidade do corpo de Cristo.

Na hora em que vos submeteis ao bispo como a Jesus Cristo, me dais a impressão de não viverdes segundo os homens, mas segundo Jesus Cristo, que morreu por nós para fugirdes à morte pela confiança na morte d’Ele.
 Adotai, pois a mansidão e renovai-vos na fé, que é a carne do Senhor, e na caridade, que é o sangue de Jesus Cristo. Ninguém dentre vós tenha algo contra o vizinho. Não deis pretextos aos gentios, para que a comunidade de Deus não seja injuriada por causa de uns poucos insensatos. Pois ai daquele por cuja leviandade meu nome for por alguns blasfemado.  (Aos Trálios)


Pela graça de que estás revestido, eu te exorto’ a acelerar ainda teu passo e a exortar também os outros para que se salvem. Justifica tua posição, empenhando-te todo, física e espiritualmente. Cuida da unidade; nada melhor do que ela. Promove a todos como o Senhor te promove; suporta a todos com amor, como aliás o fazes. Dispõe-te para orações ininterruptas; pede ainda maior inteligência do que já tens; sê vigilante, dono de um espírito sempre alertado. Fala a cada qual no estilo de Deus. Vai levando as enfermidades de todos como atleta consumado. Quanto maior o labor, maior o lucro.(A Policarpo)


Saúdo-a no sangue de Jesus Cristo, pois ela é minha perene e constante alegria, sobretudo se continuarem unidos ao Bispo, aos Presbíteros e Diáconos que estão com ele, instituídos segundo o plano de Jesus Cristo, que por Sua própria vontade os fortaleceu no Seu Espírito Santo.

 Filhos que sois da luz da verdade, fugi da cisão das más doutrinas. Onde estiver o pastor, segui-o, quais ovelhas. Pois muitos lobos, aparentemente dignos de fé, apanham, através dos maus prazeres, os atletas de Deus. Se porém permanecerdes unidos, não acharão lugar entre vós. (Aos Filadelfos)


Sejais submissos ao bispo e uns aos outros, como Jesus Cristo é com o Pai, segundo a carne, e os apóstolos com Cristo, o Pai e o Espírito. Que haja assim uma união entre a carne e o espírito. (Aos Magnésios)

Sigam todos ao bispo, como Jesus Cristo ao Pai; sigam ao presbitério como aos apóstolos. Acatem os diáconos, como à lei de Deus. Ninguém faça sem o bispo coisa alguma que diga respeito à Igreja. Por legítima seja tida tão-somente a Eucaristia, feita sob a presidência do bispo ou por delegado seu. Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim como a presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja católica. Sem o bispo, não é permitido nem batizar nem celebrar o ágape. Tudo, porém, o que ele aprovar será também agradável a Deus, para que tudo quanto se fizer seja seguro e legítimo. (Aos Esmirniotas)

Numa época como a nossa, há muitos que morrem sem saber bem porquê, morrem por serem ocidentais, por defenderem determinado aspecto do estilo de vida ocidental, mas morrem sem ter "voto na matéria"; mas há muitos a morrerem por andarem no Caminho, a liberdade de culto é uma miragem em grande parte do mundo, sendo o cristianismo castigado com a perseguição e/ou a morte. 
Inácio morreu por ser Cristão, quis morrer para morrer bem no seu cristianismo, o que numa era de seitas "cristãs" que defendem que Deus não quer que soframos, que podemos ter o que um Ricardo Salgado tinha antes da queda pela força da fé é um relembrar do discurso de Jesus e da "práxis" cristã. O cristianismo ainda é loucura para aqueles que o perseguem, bem como para aqueles que conhecem quem esteja disposto a perder a vida para a ganhar. 
Como Tertuliano disse, o sangue dos mártires é a semente da igreja. Atentem no tempo verbal!

Bibliografia:
Haykin, Michael - Redescobrindo os Pais da Igreja (Fiel)
Litfin, Bryan - Conhecendo os Pais da Igreja (Vida Nova)
Traduções de Inácio de Antioquia retiradas daqui.