terça-feira, 28 de julho de 2020

Nem sempre gaguejei, há quem se lembre do momento que marca a viragem, mas não vem aqui para o caso.
Não gaguejo por aí além, mas quando estou mais cansado ou menos à vontade, quando antecipo a gaguez, quando teimo em que ela vem, ela vem mesmo.
E dei aulas durante 14 ou 15 anos. Deve ser estranho entrar numa aula de comunicação e perceber que o professor (por vezes) gagueja. Tive alunos a rir, expectável, tive alunos que tomaram a gaguez como uma forma de teste, se este tipo gagueja e está aqui, eu também consigo fazer o que me é proposto apesar de... (acrescentar uma dificuldade a seu belo prazer).
Uma das coisas que repetia, ano após ano, nas apresentações orais que eram feitas, era que pouco me importava se o aluno ao falar em público suasse muito, gaguejasse, tremesse, ficasse vermelho ou não conseguisse ficar quieto, isso era um problema dele. Olhavam para mim, o que é que eu queria dizer com isto? O aluno tinha de vencer os seus medos, as suas fraquezas, dificuldades. Nem eu, nem os colegas estaríamos ali a fazer alguma coisa se não houvesse uma predisposição inicial da pessoa para fazer o seu melhor. E cada um de nós é um mundo. Desde o aluno que sempre participou e dinamizou a aula até ao dia em que a apresentação foi numa sala com palco, quedou-se entre o nervoso e o tímido. Passando pela aluna vinda de África, que pouco português falava ou entendia, aluna que tentámos motivar e puxar, que respondia a perguntas com um sorriso nervoso, acompanhado de um sim ou de um não, perguntas de explicação e não de resposta simples, ela que na apresentação final deixou-nos a todos de boca aberta, sem cábula, com um tom de voz nunca antes ouvido e uma preparação adequada, cumpriu o que eu já não esperava, num português deficiente, mas cumpriu. Tive os alunos cábulas, aqueles que não preparavam a apresentação, uns passavam com arte, outros espalhavam-se com ruído. Em todas estas circunstâncias tentei apontar as características de cada um, os pontos fortes e fracos, o futuro dependeria deles, da forma como os articulavam e aprendiam a gerir as suas características. Cada um de nós um mundo.
Já tive conversas posteriores com alguns alunos, uns perceberam a importância da cadeira anos depois, quando se viram a fazer o que não esperavam, outros aproveitaram para reformular estratégias de comunicação e debelar dificuldades percebidas. Mas falava de gaguez...
Há diferentes reacções à gaguez, o desinteresse é a mais cruel, seja uma gaguez em maior ou menor grau, não ajuda o gago perceber que as pessoas desligaram o áudio; nem todos desligam, uns tentam descobrir a palavra emperrada. Junte-se a isto os esgares advindos da repetição dos sons e o gago tem o prato cheio. Numa sala de aula, pode ser um barril de pólvora, ter tempo para fazer uma apresentação, ser directa ou indirectamente gozado, ou assistir ao desinteresse dos colegas, enquanto se é avaliado. Enquanto docente, passei por cima dessas reacções, para os mais chico-espertos era apertar os calos das suas dificuldades e rapidamente viam a luz. Mas a verdade é que sempre fui respeitado na minha gaguez, acredito que pela dignidade de quem o fez e não tanto por medo de sofrerem alguma coisa da minha parte.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

A semana passada passámos o fim de semana com um casal amigo, ela foi minha colega de licenciatura. No domingo, depois de algumas horas de conversa, algumas delas focadas nas aventuras e desventuras do curso, nas pessoas que nos acompanharam nessa viagem, ela dizia "não sei quem é, há mais de vinte anos que não pensava nisso".
Neste sentido, sou português, vivo com a memória, algumas delas são tão vívidas que duvido que já não as tenha alterado definitivamente, há caras e nomes que não associo, a uma foto de alguém que deveria reconhecer sem dificuldades o meu cérebro cancelou momentânea, mas definitivamente, as sinapses. Se saudade é um termo português e provavelmente uma acção muito nossa, reconheço-me nesse escarafunchar das gavetas da memória.
O papel da escola, num sentido mais lato, nestas gavetas parece-me óbvio, estive na escola até aos 35 anos, como aluno e professor, e a determinada altura nas duas valências. Muita da minha experiência de vida, grande parte dos meus amigos vieram dali. A postura e forma de dar aulas foram uma reacção e uma acção empática relativamente às experiências enquanto aluno. Tentei ignorar e exorcisar aquilo que experienciei como mau ou fraco, tentei imitar as atitudes e modelos pedagógicos que admirei, sem nunca deixar de ser eu. E ainda assim a sala de aula mudou-me, passei a falar mais, a reagir mais rapidamente e a interromper mais!
Escrevi logo no início que vivia com a memória, tinha escrito inicialmente "na memória", mas pareceu-me desadequado, esta segunda proposição parecia indicar uma passividade minha relativamente à memória, um domínio desta relativamente à minha vontade, à minha prática e acção. Não vivo consumido pelas memórias, mas estas acabam por interagir com o meu presente, serem desencadeadas pela espuma dos dias.
Às vezes não me lembro do contexto, do "público", até do que aconteceu depois, mas somente de um ou dois segundos, não tanto da acção, mas do sentimento que ficou associado a uma imagem, que pode e será já uma interpretação minha, a consolidação de algo não muito consciente, mas que a mente foi trabalhando e solidificando também imageticamente.
A prova de que a memória é demasiado subjectiva para se nela confiar são as conversas que já tive com duas ou três pessoas que privaram comigo, que conversaram sobre episódios e pessoas, que demonstraram terem estado lá e eu que não as reconheci, confirmei a veracidade dos relatos, percebi o afecto com que me tratavam, mas a minha mente apagara-as, nem uma luzinha.
Quem me conhece melhor já não estranha, eu ainda vou tentando perceber, mas sem grandes esperanças.

domingo, 26 de julho de 2020

Nada. Nenhuma ideia. Nenhuma vontade de escrever sobre o que já escrevi. Os mesmos temas, as mesmas palavras, os mesmos jogos de palavras. A mesmice coisa. Já ouvi elogios de leitores profissionais, de professores que fazem da vida a dissecação do texto. E então? Poucos os leram, e esses tantos passaram por cima da minha vontade de ler, não tanto de escrever. Prefiro ser entretido a entreter, as pessoas são difíceis de contentar e, enquanto resultado, o da leitura é mais garantido.
Não será somente uma questão de preguiça, mas de perfeccionismo, e este dá trabalho. Tenho histórias começadas e abandonadas, falta-me o jeito, a arte e o empenho para dar corpo às ideias, não é algo que consiga fazer em três tempos, o que me atrapalha a vontade. Escrevi diversos textos curtos, eram a minha praia, mas até esses tenho abandonado.
E até a leitura tem mudado, obviamente, leio mais lentamente, preciso de maior concentração, os livros que lia com prazer entediam-me, aqueles que pouco me interessavam hoje são dos meus predilectos.
Continuo a ter uma predilecção pelo sexo dos anjos, pela metalinguagem ou pela metaliteratura, i. e., pelo (falso) diário, ou pela ficção com fronteiras esbatidas, gosto do Vila-Matas. Um amigo, livreiro, dizia que havia gostos para tudo, mas que eu era dos poucos que comprava religiosamente os livros dele. Não gosto de todos, se calhar falta-me cultura e conhecimento para compreender e ultrapassar a questão do gosto, talvez não sinta o golpe de asa em alguns deles, ou talvez não sejam vários livros, mas capítulos de uma obra contínua e, como sabemos, há capítulos mais interessantes do que outros.
Há depois as idiossincrasias, conheço gente que devorou com gosto livros que me obriguei a ler, para chegar ao fim. Gostámos da mesma obra, mas o caminho que fizemos foi diferente. Acho piada a isto, quando dava aulas tinha sempre uma lista de livros para os alunos, eles tinham de escolher um e fazer uma apresentação com base na leitura do mesmo. Durante anos tinha um livro pequenino, o Morreste-me do José Luís Peixoto, era o campeão dos calões, com pouco mais de 50 páginas, para quem não gosta de ler era uma tentação certa. O livro é um exorcizar da morte do pai, é um acerto de contas com a falta que o pai faz ao narrador, com a morte, a ausência, a dor. Quantas vezes ouvi, "professor, tramou-me, escolhi o livro mais pequeno, mas a leitura doeu-me, chorei, pensei no que me acontecerá quando o meu pai morrer". Sorria, o objectivo fora cumprido, a leitura mexera com eles, embarcaram nela com uma falsa ideia de facilitismo e encontraram um caminho que lhes pediu acção. Foram a pensar que a rapidez e apatia eram dados adquiridos e foram apanhados na curva, muitos não se estamparam, continuaram a viagem, com nódoas negras, mas ainda assim...
Não me lembro do início do texto, ando assim, termino com uma leitura, O Último Barco de Domingo Villar, um policial com 800 páginas, em que nas primeiras 630 nada acontece!Ou melhor, acontece tudo o que é importante num romance, entretecem-se as vidas das personagens, as suas idiossincrasias, lê-se a acção narrativa, mas também a acção interior, dá-se pistas ao leitor, muitas delas falsas. Mas o que me cativa é perceber a arte de um autor que narra as vidas exterior e interior da sua personagem, do seu inspector, que demorou oito anos a escrever o livro, oito anos a escrever vidas, ficcionais, mas vidas.
Já perceberam o desejo de ser leitor? Oito anos debruçado sobre uma obra... Ainda não é para mim.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Senhor, ajuda-me no meio às dificuldades, ao me afogar na minha ansiedade, ao olhar temeroso para o futuro sem atentar para o Deus que me sustentou no passado e me guarda no presente, ao balbuciar orações incompletas, toldadas pela preocupação, pela minha imaginação pecaminosa. Quero confiar em Ti, mais ainda quando percebo quão pequena a confiança é, quero ter a certeza do salmista, até porque a tenho provado, "como os montes estão à roda de Jerusalém, assim o SENHOR está à volta do seu povo."
Levanto os meus olhos para os montes e só posso ver o Teu cuidado e sustento. Guia-me pelo caminho da confiança e dependência, dirige os meus pés, aumenta a minha fé.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Park Bench/Um Pedaço de Madeira e Aço de Chabouté

Em 2002, a Marvel decidiu apostar num "evento", ´Nuff Said era um desafio às equipas criativas dos títulos mensais, criar uma história sem texto, contar a história somente através das imagens. Lembro-me que fiquei desiludido, mais pela rapidez com que li a minha dose mensal de títulos que comprava do que por outra coisa. Sei que tenho para ali pelo menos quatro títulos abrangidos por esta iniciativa, New X-Men de Grant Morrison, Spider-Man de Straczynski, Daredevil de Bendis e Exiles de Judd Winick. De memória, só me lembro vagamente dos números de New X-Men e de Exiles.
Nos últimos dois anos, temos cá em casa visto vários clássicos do cinema, e temos descoberto alguns clássicos mudos, Aurora de Murnau e Metropolis de Fritz Lang foram os dois que nos marcaram mais até agora, mas poderia alargar o número de títulos de cinema mudo vistos para mais uma dúzia. Chaplin tem um filme sonoro em que descarta o diálogo, por considerar que o som seria coisa de pouca dura. Carreiras terminaram e começaram pelo advento do sonoro no cinema, alguns dos grandes actores do mudo tinham vozes pouco apelativas para o sonoro (Singing in the Rain mostra bem esta mudança de paradigma). A banda desenhada, seja em títulos mensais, em tiras de jornal, cartoons ou graphic novels, tem demonstrado que pode tirar partido da junção entre texto e imagem, mas são muito diversos os exemplos de autores que veiculam a mensagem pretendida ou que conseguem contar a história que desejam usando somente o desenho. Vem-me à mente Quino e os seus cartoons geniais, que tanto usei em aulas. Ando a vaguear entre cinema e banda desenhada, entre cinema mudo e banda desenhada sem texto para falar de Park Bench de Chabouté, uma banda desenhada de 328 páginas que dispensa o texto.


Comecemos pelo título, li Park Bench, na edição inglesa editada pela Faber & Faber. O título original é bem mais expressivo e poético, Un peu de bois et d´acier; a editora brasileira Pipoca e Nanquim traduziu-o sem dificuldades, Um Pedaço de Madeira e Aço. O título poético original assenta que nem uma luva na história de Chabouté, uma história em que a personagem principal é um objecto, ou o espaço adjcente a este, um banco de jardim. Chabouté conta diversas histórias, através de diversas personagens, o tipo que corre no parque e que usa o banco para os seus exercícios diários de alongamentos, o casal de idosos que partilha um bolo, o sem abrigo que bebe uma garrafa ou dorme no banco e o polícia que o multa e escorraça dali, o cão que micta num dos pés do banco, o trabalhador da câmara responsável pela conservação do banco, a senhora que se senta no banco a ler um livro, entre outros. O banco do jardim, um dos objetos mais simples e recursivo do nosso dia a dia dá-nos a passagem do tempo, temporal e meteorológico, e com ela o quotidiano banal de diversas personagens. A preto e branco, em planos diversos, mais ou menos aproximados do banco, Chabouté usa o desenho e as sombras de forma detalhada e expressiva para contar pequenos quadros de pessoas e animais. A expressão das personagens descarta a necessidade de texto, dei por mim a rir ou simplesmente a sorrir com o humor, a ternura e a exasperação das personagens.




Park Bench é um título objectivo, mas como já referi, que descarta a poesia do título original, poesia esta que casa bem com o teor da narrativa descrita graficamente. O livro trata da interacção com um determinado espaço, da vida quotidiana, dos pequenos detalhes que a observação das pessoas permite, o livro, como um bom filme silencioso, ganha e transborda o silêncio nele existente, a palavra como forma de comunicação é aqui supérflua, porque a imagem, o traço, o preto e branco e sombras usam o medium da melhor forma possível. "Uma imagem vale por mil palavras" torna-se realidade nesta banda desenhada. O silêncio das imagens tanto pode ser terno, como ensurdecedor, como a realidade transposta, do casal de idosos que partilha os bolos ou doces ao abrir de uma carta que confirma o tumor.





















Park Bench faz o difícil, fazer de um local pelo qual passamos centenas ou milhares de vezes sem atentarmos para o que está à nossa volta a personagem principal, brincando no fim com a alteração de paradigma, o banco é trocado por um outro mais moderno, mas menos ergonómico, menos familiar, menos prático. As pequenas histórias contadas são-nos familiares, expectáveis e redundantes no seu término, o final é recursivo e xaroposo, mas cai como a cereja em cima do bolo.

Uma das grandes leituras deste ano. 



















quinta-feira, 16 de abril de 2020

Lost Dogs de Jeff Lemire


Vou tentar escrever opiniões curtas sobre algumas banda desenhadas, se conseguir escrever uma por semana fico satisfeito.
Vou, entre outras coisas, escrever muito sobre Jeff Lemire, nenhum outro autor me cativou nos últimos anos quanto Lemire. Acho que entrei no universo criativo de Lemire com Animal Man, na altura gostei, mas não fixei o nome do canadiano, aliás, já li muita da produção de super-heróis de Lemire e não sou adepto fervoroso, Animal Man e Green Arrow destacam-se, ainda que não tenha lido nada do que escreveu para a Valiant, mas foi ao ler Black Hammer que o interesse em Lemire cresceu, haveremos de ter tempo para falar de Black Hammer, mas o que mais me surpreendeu e agarrou nesse universo foi a homenagem, conhecimento e amor de Lemire pelos comics americanos, das diferentes eras, editoras e autores, a forma como isso é destilado num universo de forma coesa, mas caleidoscopicamente, surpreendeu-me, ainda que o início tenha exigido de mim algum esforço. Parafraseando Pessoa, de início estranhei (demorei a perceber a homenagem, teimosamente encarei a obra inicialmente como pastiche), mas depois entranhei.

Lost Dogs é a primeira obra (auto-)publicada de Jeff Lemire e percebe-se isso. As primeiras doze páginas foram fruto de um desafio criado por Scott McCloud, desenhar 24 páginas em 24 horas, o que ficar na página não sai, é um desafio para o criador e talvez isso explique também o aspecto mais cru e “atabalhoado” desta primeira obra de Lemire.
O mais interessante em Lost Dog é descobrir a génese e criatividade do autor canadiano, já há alguns dos temas mais caros a Lemire, a família e os seus relacionamentos como base narrativa, a redenção das personagens, a brutalidade e violência como ambiente em que as personagens se movimentam. Sendo uma primeira obra, datada de 2005, consegue-se perceber claramente a evolução narrativa e artística de Lemire. Um dos pontos fortes de Lemire, e uma das razões porque gosto tanto dele, é a narrativa visual, a passagem de quadrado para quadrado, a forma como veicula a emoção e como a história é contada, aqui essa narrativa visual ainda é imberbe, mas já dá para perceber a competência visual do canadiano.


Sailor é um “gigante” de camisola branca e vermelha, um homem feio e rijo, que encontra na sua família o seu abrigo. Casado, com uma filha e um cão, vive da terra, no campo, onde é feliz. A história inicia-se com esse retrato idílico e avança com a decisão de levar a família a passear à cidade. O tipo de maravilhamento presente em Sunrise (Aurora), a obra prima de Murnau, está presente aqui; mas se em Sunrise Murnau conta a história de um homem que leva a mulher a passear à cidade antes de matá-la para consumar uma traição, reencontrando o amor pela esposa, Lost Dogs faz o caminho inverso, a cidade que reacende o amor em Sunrise é em Lost Dogs a cidade que termina com a família de Sailor. A observação dos navios leva a um ataque nocturno, a filha é morta, a esposa é violada e Sailor é brutalmente atacado e lançado ao mar, rumo a um abismo, maravilhosamente ilustrado na capa.
Resgatado e vendido a um velho, que o atira para um destino de lutas clandestinas, com a promessa de revelar-lhe a localização da esposa, Lost Dogs aposta numa narrativa negra (o preto e branco e o vermelho são as cores usadas, em traço grosso, no estilo - inicial, é verdade - já inconfundível de Lemire) em que a (des)humanidade das personagens, a sua imperfeição, a sua luta por redenção (aqui não tão objectiva como em outros títulos) avançam a trama para o seu desenlace.


Lost Dogs não é a melhor obra de Lemire, longe disso, mas como primeira obra é extremamente interessante, o uso das três cores lembra o uso mais refinado do preto, branco e azul em The Nobody, a arte é hoje mais fluida, a estrutura das páginas mais natural e “cinematográfica”. Mas a “voz” e a visão de Lemire já aqui estão.  Faltará a poesia Lemiriana, o cuidado e atenção ao pormenor, o final mais redentor, como por exemplo em Roughneck, mas Lost Dogs é um excelente ponto inicial (desculpem a redundância) para descobrir Lemire.

terça-feira, 24 de março de 2020

The Big Country

The Big Country é um western de William Wyler, um daqueles realizadores subvalorizados por ter realizado todos os géneros e mais alguns, ser um excelente "tarefeiro", mas sem se dedicar a uma filmografia muito pessoal, com exceção talvez do que filmou no final da década de 1930 e durante toda a década de 1940 (dele são Ben-Hur, Roman Holiday, The Best Years of our Lives, The Letter, Jezebel, Mrs. Miniver, Funny Lady). A verdade é que os filmes, pelo menos os que vi, têm sempre um cunho pessoal, o último plano de Roman Holiday é delicioso, ou então sou eu que estou a tentar ver mais do que lá está, e este The Big Country é uma boa prova disso mesmo, como o plano da luta entre James McKay (Gregory Peck) e Steve Leech (Charlton Heston), para dar somente um exemplo.

Não sei se The Big Country é um western ou um anti-western, estão lá todos os temas recorrentes do género, a imensidão do território, a luta por território, os conflitos familiares e humanos numa comunidade, bem como a apatia/habituação dessa comunidade para com esses conflitos, o aparecimento de um estranho numa comunidade, enfim, faltam os índios, mas nem todos os westerns vivem do conflito entre índios e caras pálidas. Mas o filme não dá as cartas da mesma forma que um western dá, talvez porque a personagem de Peck nunca tente ser ou aja como um cowboy, é um marinheiro, com um determinado código e age de acordo com isso. 

McKay (Peck) é, então, não só o estranho porque chega a um sítio onde todos se conhecem, mas também pela forma de lidar com os problema que foge à regra, fugindo aos cânones do género. Talvez por isso a esposa, que não é fã de cowboiadas, tenha gostado tanto deste filme, a verdade é que se as temáticas estão cá e o clímax não foge ao usual, o filme balança entre o género e a fuga a este. 

A história é simples, talvez demasiado simples para 2h30 de filme, mas a verdade é que o filme não cansa e não perde fôlego. 
Chuck Connors, Gregory Peck e Carol Baker
O oficial James McKay (Peck) chega ao oeste para se juntar à noiva Patricia (Carol Baker), filha de Henry Terril (Charles Bickford), conhecido por todos como Major. A chegada é marcada pelo encontro com o grupo de Buck Hannassey (Chuck Connors), filho do inimigo do Major, Rufus Hannassey (Burl Ives). Mckay surpreende nesse momento, e em vários posteriores, a noiva pela forma como age ou, como na visão dela, não age. A presença deste corpo estranho e das suas idiossincrasias vai levar a mais alguns achaques com Steve Leech (Charlton Heston), o braço direito de Terril, apaixonado por Patricia. Os conflitos então vão-se multiplicando, entre os Terrils e os Hanasseys,  com a professora Julie Maragon (Jean Simmons) no meio, dona do terreno cobiçado pelas duas famílias, entre McKay e todos os outros, nomeadamente, a sua noiva e Leech. O final é formulaico, os relacionamentos (as suas indecisões e conclusões) estão à vista quase desde o primeiro momento, mas a dinâmica narrativa e o interesse pelo filme não diminuem por causa disso. Aliás, o o interessante na fórmula está não na forma como é utilizada, mas na forma como resulta e aqui vai resultando porque as personagens são cinzentas, passamos da certeza que um dos lados é o bom, para a certeza que nenhum é perfeito, há uma humanidade espelhada quase antagonicamente entre os homens da família e os seus capatazes, as personagens vão-se dando a conhecer, nas suas qualidades e defeitos, quase como se só pelo olhar de um estranho isso fosse possível.

Wyler usa o título The Big Country (na versão portuguesa Da Terra Nascem os Homens) como mote para diversos planos que acentuam a vastidão do território, quase tão vasto como a cobiça e desejo humanos que levam aos conflitos narrados. Os planos da visita de McKay a Maragon, da já citada luta, os planos iniciais e finais mostram a vastidão do território. Se o território é tão vasto porque é que causa tantas lutas e amores? Não haverá terra para todos? O elenco é sólido, Gregory Peck e Jean Simmons são eles mesmos, ganham e prendem-nos ao ecrã, Heston faz um raro papel secundário (acho-o sempre ligeiramente canastrão), mas é Burl Ives que se destaca, aliás o carisma e competência de Ives demonstra ainda mais a infeliz escolha de Bickford para antagonista deste, estão nos antípodas um do outro, um é grande, quase que não precisa de abrir a boca para fazer sentir a sua presença, mas quando a abre... é assombroso. Bickford não tem grande presença física, talvez nos convença antes de Ives entrar em casa deste durante a festa, mas a partir daí faz confusão a escolha.

Burl Ives
Resumindo, talvez não seja um daqueles westerns que nos vem à cabeça, mas The Big Country é um excelente filme, para amantes do género e não só.




Peck e Simmons


Peck e Simmons