terça-feira, 28 de julho de 2020

Nem sempre gaguejei, há quem se lembre do momento que marca a viragem, mas não vem aqui para o caso.
Não gaguejo por aí além, mas quando estou mais cansado ou menos à vontade, quando antecipo a gaguez, quando teimo em que ela vem, ela vem mesmo.
E dei aulas durante 14 ou 15 anos. Deve ser estranho entrar numa aula de comunicação e perceber que o professor (por vezes) gagueja. Tive alunos a rir, expectável, tive alunos que tomaram a gaguez como uma forma de teste, se este tipo gagueja e está aqui, eu também consigo fazer o que me é proposto apesar de... (acrescentar uma dificuldade a seu belo prazer).
Uma das coisas que repetia, ano após ano, nas apresentações orais que eram feitas, era que pouco me importava se o aluno ao falar em público suasse muito, gaguejasse, tremesse, ficasse vermelho ou não conseguisse ficar quieto, isso era um problema dele. Olhavam para mim, o que é que eu queria dizer com isto? O aluno tinha de vencer os seus medos, as suas fraquezas, dificuldades. Nem eu, nem os colegas estaríamos ali a fazer alguma coisa se não houvesse uma predisposição inicial da pessoa para fazer o seu melhor. E cada um de nós é um mundo. Desde o aluno que sempre participou e dinamizou a aula até ao dia em que a apresentação foi numa sala com palco, quedou-se entre o nervoso e o tímido. Passando pela aluna vinda de África, que pouco português falava ou entendia, aluna que tentámos motivar e puxar, que respondia a perguntas com um sorriso nervoso, acompanhado de um sim ou de um não, perguntas de explicação e não de resposta simples, ela que na apresentação final deixou-nos a todos de boca aberta, sem cábula, com um tom de voz nunca antes ouvido e uma preparação adequada, cumpriu o que eu já não esperava, num português deficiente, mas cumpriu. Tive os alunos cábulas, aqueles que não preparavam a apresentação, uns passavam com arte, outros espalhavam-se com ruído. Em todas estas circunstâncias tentei apontar as características de cada um, os pontos fortes e fracos, o futuro dependeria deles, da forma como os articulavam e aprendiam a gerir as suas características. Cada um de nós um mundo.
Já tive conversas posteriores com alguns alunos, uns perceberam a importância da cadeira anos depois, quando se viram a fazer o que não esperavam, outros aproveitaram para reformular estratégias de comunicação e debelar dificuldades percebidas. Mas falava de gaguez...
Há diferentes reacções à gaguez, o desinteresse é a mais cruel, seja uma gaguez em maior ou menor grau, não ajuda o gago perceber que as pessoas desligaram o áudio; nem todos desligam, uns tentam descobrir a palavra emperrada. Junte-se a isto os esgares advindos da repetição dos sons e o gago tem o prato cheio. Numa sala de aula, pode ser um barril de pólvora, ter tempo para fazer uma apresentação, ser directa ou indirectamente gozado, ou assistir ao desinteresse dos colegas, enquanto se é avaliado. Enquanto docente, passei por cima dessas reacções, para os mais chico-espertos era apertar os calos das suas dificuldades e rapidamente viam a luz. Mas a verdade é que sempre fui respeitado na minha gaguez, acredito que pela dignidade de quem o fez e não tanto por medo de sofrerem alguma coisa da minha parte.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

A semana passada passámos o fim de semana com um casal amigo, ela foi minha colega de licenciatura. No domingo, depois de algumas horas de conversa, algumas delas focadas nas aventuras e desventuras do curso, nas pessoas que nos acompanharam nessa viagem, ela dizia "não sei quem é, há mais de vinte anos que não pensava nisso".
Neste sentido, sou português, vivo com a memória, algumas delas são tão vívidas que duvido que já não as tenha alterado definitivamente, há caras e nomes que não associo, a uma foto de alguém que deveria reconhecer sem dificuldades o meu cérebro cancelou momentânea, mas definitivamente, as sinapses. Se saudade é um termo português e provavelmente uma acção muito nossa, reconheço-me nesse escarafunchar das gavetas da memória.
O papel da escola, num sentido mais lato, nestas gavetas parece-me óbvio, estive na escola até aos 35 anos, como aluno e professor, e a determinada altura nas duas valências. Muita da minha experiência de vida, grande parte dos meus amigos vieram dali. A postura e forma de dar aulas foram uma reacção e uma acção empática relativamente às experiências enquanto aluno. Tentei ignorar e exorcisar aquilo que experienciei como mau ou fraco, tentei imitar as atitudes e modelos pedagógicos que admirei, sem nunca deixar de ser eu. E ainda assim a sala de aula mudou-me, passei a falar mais, a reagir mais rapidamente e a interromper mais!
Escrevi logo no início que vivia com a memória, tinha escrito inicialmente "na memória", mas pareceu-me desadequado, esta segunda proposição parecia indicar uma passividade minha relativamente à memória, um domínio desta relativamente à minha vontade, à minha prática e acção. Não vivo consumido pelas memórias, mas estas acabam por interagir com o meu presente, serem desencadeadas pela espuma dos dias.
Às vezes não me lembro do contexto, do "público", até do que aconteceu depois, mas somente de um ou dois segundos, não tanto da acção, mas do sentimento que ficou associado a uma imagem, que pode e será já uma interpretação minha, a consolidação de algo não muito consciente, mas que a mente foi trabalhando e solidificando também imageticamente.
A prova de que a memória é demasiado subjectiva para se nela confiar são as conversas que já tive com duas ou três pessoas que privaram comigo, que conversaram sobre episódios e pessoas, que demonstraram terem estado lá e eu que não as reconheci, confirmei a veracidade dos relatos, percebi o afecto com que me tratavam, mas a minha mente apagara-as, nem uma luzinha.
Quem me conhece melhor já não estranha, eu ainda vou tentando perceber, mas sem grandes esperanças.

domingo, 26 de julho de 2020

Nada. Nenhuma ideia. Nenhuma vontade de escrever sobre o que já escrevi. Os mesmos temas, as mesmas palavras, os mesmos jogos de palavras. A mesmice coisa. Já ouvi elogios de leitores profissionais, de professores que fazem da vida a dissecação do texto. E então? Poucos os leram, e esses tantos passaram por cima da minha vontade de ler, não tanto de escrever. Prefiro ser entretido a entreter, as pessoas são difíceis de contentar e, enquanto resultado, o da leitura é mais garantido.
Não será somente uma questão de preguiça, mas de perfeccionismo, e este dá trabalho. Tenho histórias começadas e abandonadas, falta-me o jeito, a arte e o empenho para dar corpo às ideias, não é algo que consiga fazer em três tempos, o que me atrapalha a vontade. Escrevi diversos textos curtos, eram a minha praia, mas até esses tenho abandonado.
E até a leitura tem mudado, obviamente, leio mais lentamente, preciso de maior concentração, os livros que lia com prazer entediam-me, aqueles que pouco me interessavam hoje são dos meus predilectos.
Continuo a ter uma predilecção pelo sexo dos anjos, pela metalinguagem ou pela metaliteratura, i. e., pelo (falso) diário, ou pela ficção com fronteiras esbatidas, gosto do Vila-Matas. Um amigo, livreiro, dizia que havia gostos para tudo, mas que eu era dos poucos que comprava religiosamente os livros dele. Não gosto de todos, se calhar falta-me cultura e conhecimento para compreender e ultrapassar a questão do gosto, talvez não sinta o golpe de asa em alguns deles, ou talvez não sejam vários livros, mas capítulos de uma obra contínua e, como sabemos, há capítulos mais interessantes do que outros.
Há depois as idiossincrasias, conheço gente que devorou com gosto livros que me obriguei a ler, para chegar ao fim. Gostámos da mesma obra, mas o caminho que fizemos foi diferente. Acho piada a isto, quando dava aulas tinha sempre uma lista de livros para os alunos, eles tinham de escolher um e fazer uma apresentação com base na leitura do mesmo. Durante anos tinha um livro pequenino, o Morreste-me do José Luís Peixoto, era o campeão dos calões, com pouco mais de 50 páginas, para quem não gosta de ler era uma tentação certa. O livro é um exorcizar da morte do pai, é um acerto de contas com a falta que o pai faz ao narrador, com a morte, a ausência, a dor. Quantas vezes ouvi, "professor, tramou-me, escolhi o livro mais pequeno, mas a leitura doeu-me, chorei, pensei no que me acontecerá quando o meu pai morrer". Sorria, o objectivo fora cumprido, a leitura mexera com eles, embarcaram nela com uma falsa ideia de facilitismo e encontraram um caminho que lhes pediu acção. Foram a pensar que a rapidez e apatia eram dados adquiridos e foram apanhados na curva, muitos não se estamparam, continuaram a viagem, com nódoas negras, mas ainda assim...
Não me lembro do início do texto, ando assim, termino com uma leitura, O Último Barco de Domingo Villar, um policial com 800 páginas, em que nas primeiras 630 nada acontece!Ou melhor, acontece tudo o que é importante num romance, entretecem-se as vidas das personagens, as suas idiossincrasias, lê-se a acção narrativa, mas também a acção interior, dá-se pistas ao leitor, muitas delas falsas. Mas o que me cativa é perceber a arte de um autor que narra as vidas exterior e interior da sua personagem, do seu inspector, que demorou oito anos a escrever o livro, oito anos a escrever vidas, ficcionais, mas vidas.
Já perceberam o desejo de ser leitor? Oito anos debruçado sobre uma obra... Ainda não é para mim.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Senhor, ajuda-me no meio às dificuldades, ao me afogar na minha ansiedade, ao olhar temeroso para o futuro sem atentar para o Deus que me sustentou no passado e me guarda no presente, ao balbuciar orações incompletas, toldadas pela preocupação, pela minha imaginação pecaminosa. Quero confiar em Ti, mais ainda quando percebo quão pequena a confiança é, quero ter a certeza do salmista, até porque a tenho provado, "como os montes estão à roda de Jerusalém, assim o SENHOR está à volta do seu povo."
Levanto os meus olhos para os montes e só posso ver o Teu cuidado e sustento. Guia-me pelo caminho da confiança e dependência, dirige os meus pés, aumenta a minha fé.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Park Bench/Um Pedaço de Madeira e Aço de Chabouté

Em 2002, a Marvel decidiu apostar num "evento", ´Nuff Said era um desafio às equipas criativas dos títulos mensais, criar uma história sem texto, contar a história somente através das imagens. Lembro-me que fiquei desiludido, mais pela rapidez com que li a minha dose mensal de títulos que comprava do que por outra coisa. Sei que tenho para ali pelo menos quatro títulos abrangidos por esta iniciativa, New X-Men de Grant Morrison, Spider-Man de Straczynski, Daredevil de Bendis e Exiles de Judd Winick. De memória, só me lembro vagamente dos números de New X-Men e de Exiles.
Nos últimos dois anos, temos cá em casa visto vários clássicos do cinema, e temos descoberto alguns clássicos mudos, Aurora de Murnau e Metropolis de Fritz Lang foram os dois que nos marcaram mais até agora, mas poderia alargar o número de títulos de cinema mudo vistos para mais uma dúzia. Chaplin tem um filme sonoro em que descarta o diálogo, por considerar que o som seria coisa de pouca dura. Carreiras terminaram e começaram pelo advento do sonoro no cinema, alguns dos grandes actores do mudo tinham vozes pouco apelativas para o sonoro (Singing in the Rain mostra bem esta mudança de paradigma). A banda desenhada, seja em títulos mensais, em tiras de jornal, cartoons ou graphic novels, tem demonstrado que pode tirar partido da junção entre texto e imagem, mas são muito diversos os exemplos de autores que veiculam a mensagem pretendida ou que conseguem contar a história que desejam usando somente o desenho. Vem-me à mente Quino e os seus cartoons geniais, que tanto usei em aulas. Ando a vaguear entre cinema e banda desenhada, entre cinema mudo e banda desenhada sem texto para falar de Park Bench de Chabouté, uma banda desenhada de 328 páginas que dispensa o texto.


Comecemos pelo título, li Park Bench, na edição inglesa editada pela Faber & Faber. O título original é bem mais expressivo e poético, Un peu de bois et d´acier; a editora brasileira Pipoca e Nanquim traduziu-o sem dificuldades, Um Pedaço de Madeira e Aço. O título poético original assenta que nem uma luva na história de Chabouté, uma história em que a personagem principal é um objecto, ou o espaço adjcente a este, um banco de jardim. Chabouté conta diversas histórias, através de diversas personagens, o tipo que corre no parque e que usa o banco para os seus exercícios diários de alongamentos, o casal de idosos que partilha um bolo, o sem abrigo que bebe uma garrafa ou dorme no banco e o polícia que o multa e escorraça dali, o cão que micta num dos pés do banco, o trabalhador da câmara responsável pela conservação do banco, a senhora que se senta no banco a ler um livro, entre outros. O banco do jardim, um dos objetos mais simples e recursivo do nosso dia a dia dá-nos a passagem do tempo, temporal e meteorológico, e com ela o quotidiano banal de diversas personagens. A preto e branco, em planos diversos, mais ou menos aproximados do banco, Chabouté usa o desenho e as sombras de forma detalhada e expressiva para contar pequenos quadros de pessoas e animais. A expressão das personagens descarta a necessidade de texto, dei por mim a rir ou simplesmente a sorrir com o humor, a ternura e a exasperação das personagens.




Park Bench é um título objectivo, mas como já referi, que descarta a poesia do título original, poesia esta que casa bem com o teor da narrativa descrita graficamente. O livro trata da interacção com um determinado espaço, da vida quotidiana, dos pequenos detalhes que a observação das pessoas permite, o livro, como um bom filme silencioso, ganha e transborda o silêncio nele existente, a palavra como forma de comunicação é aqui supérflua, porque a imagem, o traço, o preto e branco e sombras usam o medium da melhor forma possível. "Uma imagem vale por mil palavras" torna-se realidade nesta banda desenhada. O silêncio das imagens tanto pode ser terno, como ensurdecedor, como a realidade transposta, do casal de idosos que partilha os bolos ou doces ao abrir de uma carta que confirma o tumor.





















Park Bench faz o difícil, fazer de um local pelo qual passamos centenas ou milhares de vezes sem atentarmos para o que está à nossa volta a personagem principal, brincando no fim com a alteração de paradigma, o banco é trocado por um outro mais moderno, mas menos ergonómico, menos familiar, menos prático. As pequenas histórias contadas são-nos familiares, expectáveis e redundantes no seu término, o final é recursivo e xaroposo, mas cai como a cereja em cima do bolo.

Uma das grandes leituras deste ano. 



















quinta-feira, 16 de abril de 2020

Lost Dogs de Jeff Lemire


Vou tentar escrever opiniões curtas sobre algumas banda desenhadas, se conseguir escrever uma por semana fico satisfeito.
Vou, entre outras coisas, escrever muito sobre Jeff Lemire, nenhum outro autor me cativou nos últimos anos quanto Lemire. Acho que entrei no universo criativo de Lemire com Animal Man, na altura gostei, mas não fixei o nome do canadiano, aliás, já li muita da produção de super-heróis de Lemire e não sou adepto fervoroso, Animal Man e Green Arrow destacam-se, ainda que não tenha lido nada do que escreveu para a Valiant, mas foi ao ler Black Hammer que o interesse em Lemire cresceu, haveremos de ter tempo para falar de Black Hammer, mas o que mais me surpreendeu e agarrou nesse universo foi a homenagem, conhecimento e amor de Lemire pelos comics americanos, das diferentes eras, editoras e autores, a forma como isso é destilado num universo de forma coesa, mas caleidoscopicamente, surpreendeu-me, ainda que o início tenha exigido de mim algum esforço. Parafraseando Pessoa, de início estranhei (demorei a perceber a homenagem, teimosamente encarei a obra inicialmente como pastiche), mas depois entranhei.

Lost Dogs é a primeira obra (auto-)publicada de Jeff Lemire e percebe-se isso. As primeiras doze páginas foram fruto de um desafio criado por Scott McCloud, desenhar 24 páginas em 24 horas, o que ficar na página não sai, é um desafio para o criador e talvez isso explique também o aspecto mais cru e “atabalhoado” desta primeira obra de Lemire.
O mais interessante em Lost Dog é descobrir a génese e criatividade do autor canadiano, já há alguns dos temas mais caros a Lemire, a família e os seus relacionamentos como base narrativa, a redenção das personagens, a brutalidade e violência como ambiente em que as personagens se movimentam. Sendo uma primeira obra, datada de 2005, consegue-se perceber claramente a evolução narrativa e artística de Lemire. Um dos pontos fortes de Lemire, e uma das razões porque gosto tanto dele, é a narrativa visual, a passagem de quadrado para quadrado, a forma como veicula a emoção e como a história é contada, aqui essa narrativa visual ainda é imberbe, mas já dá para perceber a competência visual do canadiano.


Sailor é um “gigante” de camisola branca e vermelha, um homem feio e rijo, que encontra na sua família o seu abrigo. Casado, com uma filha e um cão, vive da terra, no campo, onde é feliz. A história inicia-se com esse retrato idílico e avança com a decisão de levar a família a passear à cidade. O tipo de maravilhamento presente em Sunrise (Aurora), a obra prima de Murnau, está presente aqui; mas se em Sunrise Murnau conta a história de um homem que leva a mulher a passear à cidade antes de matá-la para consumar uma traição, reencontrando o amor pela esposa, Lost Dogs faz o caminho inverso, a cidade que reacende o amor em Sunrise é em Lost Dogs a cidade que termina com a família de Sailor. A observação dos navios leva a um ataque nocturno, a filha é morta, a esposa é violada e Sailor é brutalmente atacado e lançado ao mar, rumo a um abismo, maravilhosamente ilustrado na capa.
Resgatado e vendido a um velho, que o atira para um destino de lutas clandestinas, com a promessa de revelar-lhe a localização da esposa, Lost Dogs aposta numa narrativa negra (o preto e branco e o vermelho são as cores usadas, em traço grosso, no estilo - inicial, é verdade - já inconfundível de Lemire) em que a (des)humanidade das personagens, a sua imperfeição, a sua luta por redenção (aqui não tão objectiva como em outros títulos) avançam a trama para o seu desenlace.


Lost Dogs não é a melhor obra de Lemire, longe disso, mas como primeira obra é extremamente interessante, o uso das três cores lembra o uso mais refinado do preto, branco e azul em The Nobody, a arte é hoje mais fluida, a estrutura das páginas mais natural e “cinematográfica”. Mas a “voz” e a visão de Lemire já aqui estão.  Faltará a poesia Lemiriana, o cuidado e atenção ao pormenor, o final mais redentor, como por exemplo em Roughneck, mas Lost Dogs é um excelente ponto inicial (desculpem a redundância) para descobrir Lemire.

terça-feira, 24 de março de 2020

The Big Country

The Big Country é um western de William Wyler, um daqueles realizadores subvalorizados por ter realizado todos os géneros e mais alguns, ser um excelente "tarefeiro", mas sem se dedicar a uma filmografia muito pessoal, com exceção talvez do que filmou no final da década de 1930 e durante toda a década de 1940 (dele são Ben-Hur, Roman Holiday, The Best Years of our Lives, The Letter, Jezebel, Mrs. Miniver, Funny Lady). A verdade é que os filmes, pelo menos os que vi, têm sempre um cunho pessoal, o último plano de Roman Holiday é delicioso, ou então sou eu que estou a tentar ver mais do que lá está, e este The Big Country é uma boa prova disso mesmo, como o plano da luta entre James McKay (Gregory Peck) e Steve Leech (Charlton Heston), para dar somente um exemplo.

Não sei se The Big Country é um western ou um anti-western, estão lá todos os temas recorrentes do género, a imensidão do território, a luta por território, os conflitos familiares e humanos numa comunidade, bem como a apatia/habituação dessa comunidade para com esses conflitos, o aparecimento de um estranho numa comunidade, enfim, faltam os índios, mas nem todos os westerns vivem do conflito entre índios e caras pálidas. Mas o filme não dá as cartas da mesma forma que um western dá, talvez porque a personagem de Peck nunca tente ser ou aja como um cowboy, é um marinheiro, com um determinado código e age de acordo com isso. 

McKay (Peck) é, então, não só o estranho porque chega a um sítio onde todos se conhecem, mas também pela forma de lidar com os problema que foge à regra, fugindo aos cânones do género. Talvez por isso a esposa, que não é fã de cowboiadas, tenha gostado tanto deste filme, a verdade é que se as temáticas estão cá e o clímax não foge ao usual, o filme balança entre o género e a fuga a este. 

A história é simples, talvez demasiado simples para 2h30 de filme, mas a verdade é que o filme não cansa e não perde fôlego. 
Chuck Connors, Gregory Peck e Carol Baker
O oficial James McKay (Peck) chega ao oeste para se juntar à noiva Patricia (Carol Baker), filha de Henry Terril (Charles Bickford), conhecido por todos como Major. A chegada é marcada pelo encontro com o grupo de Buck Hannassey (Chuck Connors), filho do inimigo do Major, Rufus Hannassey (Burl Ives). Mckay surpreende nesse momento, e em vários posteriores, a noiva pela forma como age ou, como na visão dela, não age. A presença deste corpo estranho e das suas idiossincrasias vai levar a mais alguns achaques com Steve Leech (Charlton Heston), o braço direito de Terril, apaixonado por Patricia. Os conflitos então vão-se multiplicando, entre os Terrils e os Hanasseys,  com a professora Julie Maragon (Jean Simmons) no meio, dona do terreno cobiçado pelas duas famílias, entre McKay e todos os outros, nomeadamente, a sua noiva e Leech. O final é formulaico, os relacionamentos (as suas indecisões e conclusões) estão à vista quase desde o primeiro momento, mas a dinâmica narrativa e o interesse pelo filme não diminuem por causa disso. Aliás, o o interessante na fórmula está não na forma como é utilizada, mas na forma como resulta e aqui vai resultando porque as personagens são cinzentas, passamos da certeza que um dos lados é o bom, para a certeza que nenhum é perfeito, há uma humanidade espelhada quase antagonicamente entre os homens da família e os seus capatazes, as personagens vão-se dando a conhecer, nas suas qualidades e defeitos, quase como se só pelo olhar de um estranho isso fosse possível.

Wyler usa o título The Big Country (na versão portuguesa Da Terra Nascem os Homens) como mote para diversos planos que acentuam a vastidão do território, quase tão vasto como a cobiça e desejo humanos que levam aos conflitos narrados. Os planos da visita de McKay a Maragon, da já citada luta, os planos iniciais e finais mostram a vastidão do território. Se o território é tão vasto porque é que causa tantas lutas e amores? Não haverá terra para todos? O elenco é sólido, Gregory Peck e Jean Simmons são eles mesmos, ganham e prendem-nos ao ecrã, Heston faz um raro papel secundário (acho-o sempre ligeiramente canastrão), mas é Burl Ives que se destaca, aliás o carisma e competência de Ives demonstra ainda mais a infeliz escolha de Bickford para antagonista deste, estão nos antípodas um do outro, um é grande, quase que não precisa de abrir a boca para fazer sentir a sua presença, mas quando a abre... é assombroso. Bickford não tem grande presença física, talvez nos convença antes de Ives entrar em casa deste durante a festa, mas a partir daí faz confusão a escolha.

Burl Ives
Resumindo, talvez não seja um daqueles westerns que nos vem à cabeça, mas The Big Country é um excelente filme, para amantes do género e não só.




Peck e Simmons


Peck e Simmons


Dark Clouds, Deep Mercy (III)

A terceira e última parte do livro, Viver com Lamento, tenta fazer algumas aplicações práticas, tanto pessoais (no que à leitura da Bíblia, ao pranto, ao aconselhamento, à confissão de pecados diz respeito) como comunitárias (em funerais, em orações congregacionais, na pregação e ensino, em pequenos grupos, nas questões raciais e na criação de cânticos espirituais).

"I now believe lamenting together is the church´s calling." p.176

Tendo em conta tudo o que já foi dito, Vroegop resume o lamento como uma linguagem para perda, uma solução para o silêncio, uma categoria para as queixas, uma estrutura centrada em Deus para "canalizar" os nossos sentimentos, um processo para a nossa dor e um caminho para a adoração.
Numa ideia, a prática do lamento prepara-nos para dificuldades futuras, já que nos leva por um caminho de restauração emocional e de crescimento espiritual. Como? Dando-nos uma linguagem mais profunda, uma empatia mais verdadeira e profunda com quem sofre, vivendo de forma prática a esperança escatológica que temos e a dependência no Deus soberano, poderoso e salvador em que acreditamos. O nosso louvor e adoração está cheio de vitória, mas afasta o lamento e as lutas por que passamos para segundo ou terceiro plano; sem querermos (e por vezes, conscientemente, também) ignoramos a linguagem presente nos salmos, e também a teologia associada, perdendo uma forma de aliviar e lutar contra as nossas provações e guerras espirituais. Somos mais do que vencedores em Cristo, claro, mas continuamos a passar por dificuldades, dor e espanto, quantas vezes tentamos (eu tento) passar estoicamente por essas situações sem perceber que estou a evitar exercitar e aprofundar a minha fé? 

"Lament helps us embrace two truths at the same time: hard is hard; hard is not bad" p.189

A frase batida do livro, que deixei para o fim, "chorar é humano, lamentar é cristão". Confiar em Deus não está em oposição à tristeza profunda, os cristãos lamentam expectativamente, acreditam que a morte e ressurreição de Jesus inaugurou a derrota da morte e do pecado.

"You see, Christianity needs competent lamenters. The gospel empowers the followers of Jesus to enter the dark moments of people´s lives. Those who know the story of hope and who believe in God´s goodness can be conduits of his grace. Lament allows us to hear the brokeness around us, weep with those who weep, and walk with them on the long road of sorrow." p.194

(Estes pequenos textos valem o que valem, e não dispensam a leitura do livro. A leitura deste em Dezembro foi um autêntico bálsamo e fonte de benção Lendo inglês, aceitem a sugestão).



segunda-feira, 23 de março de 2020

Dark Clouds, Deep Mercy (II)

A segunda parte do livro intitula-se Aprender das Lamentações e o seu foco é o livro de Lamentações de Jeremias.

"God whispers to us in our pleasures, speaks in our conscience, but shouts in our pains: it is His megaphone to rouse a deaf world". 
C. S. Lewis

O lamento não é somente uma expressão de tristeza mas também um memorial, Lamentações mostra-nos uma tensão entre a presença da dor e a soberania de Deus.

Vroegop dá-nos 3 lições dos primeiros 2 capítulos de Lamentações:

1) o pecado é o problema real

O lamento interpreta todo o sofrimento través das lentes da compreensão bíblica do pecado, a realidade do pecado deve interpretar as nossas dores e sofrimentos.

2) o meu pecado e sofrimento não são os únicos problemas

"Our natural bias is to individualize suffering (...) I need to be reminded that my pain is not the only pain." p. 102

"More than just providing confort and help in our times of sorrow, the grace of lament helps tune our hearts to the pain of others and to the foundational truths about God and the World. We can lament on behalf of our culture, identifying with the brokeness around us. When leaders fall, scandals shock or unrighteousness reigns, we have a prayer language to embrace the disappointment of casting judgement." p.102

3) O lamento acorda a alma, aponta-nos para a perspectiva divina

O lamento é, em certo sentido, uma disciplina espiritual que pode acordar as nossas almas da apatia espiritual. 

O capítulo 3 de Lamentações tem como contexto a destruição de Jerusalém e convida-nos à confiança na soberania de Deus ainda assim. Em tempos de Covid-19, é importante não ignorarmos esta verdade, Deus é soberano, tanto na riqueza, como na pobreza, tanto na saúde como na pandemia.
Vroegop anima-nos, o lamento bíblico é transformativo porque não só dá voz à dor que sentimos, mas também porque ancora o nosso coração às verdades em que acreditamos. 

O lamento arrisca a esperança quando a vida é dura.

"Faith is a footbridge that you don´t know will hold you up over the chasm until you´re forced to walk out onto it" 
Nicholas Wolterstorff p.110

"Lamentations shows us that hope does not come from a change of circumstances. Rather, it comes from what you know to be true despite the situation in front of you. In other words, you live through suffering by what you believe, not by what you see or feel." p.110

"Lament can help you by reharsing the truth of the Bible to preach your heart, to interpret pain through the lens of God´s character and his ultimate mercy." p.111

O lamento é a oportunidade de expressarmos a tristeza e admiração que sentimos pelas dificuldades e situações tenebrosas porque passamos, ao mesmo tempo que ensaiamos as verdades em que acreditamos. É viver pela fé, mas também a fé que professamos!

De uma forma prática, Vroegop dá-nos 4 verdades que Jeremias nutriu no seu coração:

1) As misericórdias de Deus nunca acabam (3:22-24)

Mesmo no pior dos cenários, Deus é suficiente, mesmo no choro e miséria humana Deus não deixa de ser Deus!

2) Esperar não é em vão (3:25-27) 

Esperar no Senhor, biblicamente, é colocar a minha esperança Nele. Esperar é das coisas mais difíceis que podemos fazer porque na realidade não estamos a fazer nada, estamos à espera que Deus faça! Para quem, como eu, gosta de estar no controlo da sua vida, da sua casa, das suas finanças, esperar coloca-me num lugar desconfortável, porque afirma de forma prática que eu não sou o senhor da minha vida!

3) A palavra final ainda não foi proferida (3:31-32)

O sofrimento não é o fim, choramos por causa da dor e sofrimento, mas devemos olhar com expectativa para o que Deus ainda trará, esse também é um dos propósitos do sofrimento, olhar para o futuro redentor prometido por Deus.

4) Deus é sempre bom

Há um propósito amoroso, redentor, gracioso e misericordioso por trás de cada lágrima.
"Todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam a Deus".

O capítulo quatro da Lamentações ajuda-nos a ver quais são os nossos ídolos. O lamento funciona como um memorial à futilidade de confiar em algo ou alguém além do nosso Deus, trocando por miúdos, as dificuldades ajudam a revelar os nossos ídolos. 

"Sorrow comes from losing one good thing among others... Despair, however, is inconsolable, because it comes from losing an ultimate thing. When you lose the ultimate source of your meaning or hope, there are no alternative sources to turn to. It breaks your spirit."
Tim Keller p. 124

Em que é que eu coloco a minha segurança e confiança? A dor pode, para além de ser uma plataforma para a adoração, ser também uma forma de me levar ao crescimento espiritual e ao arrependimento. Vroegop faz uma lista de coisas em que tendemos a colocar a nossa confiança, da segurança financeira a pessoas, do desejo de conforto cultural (ignorando a miséria e pobreza à nossa volta) à presunção do favor divino (somos o povo de Deus, Deus estará sempre connosco, essa foi a desculpa do povo para ficar cego ao seu próprio pecado e à graça divina) passando pela tentação de fazermos dos nossos líderes espirituais ídolos. 
Tenho desenterrado os ídolos do meu coração? Tenho-me agarrado a eles? Que este seja um momento de refrigério espiritual e de identificação dos meus ídolos. 

Lamentações termina apontando para Deus, sem nos dar o final da história. Não sei se contigo, mas esse facto mexe comigo. O ponto para o autor é o de o lamento ser uma linguagem de reorientação espiritual, a questão é que o lamento não é um passo de mágica - lamenta e tudo será resolvido, não! O lamento não resolve todas as situações e problemas da minha vida, a resposta pode tardar, pode nem ser aquela que eu desejo, mas o lamento é a linguagem de oração para esta realidade.

A oração por restauração e renovação no final de Lamentações aponta para algo que só Deus pode fazer, mas também para a nossa maior necessidade, estarmos bem com Deus, ou seja, o lamento é a linguagem de quem conhece a história completa, o Evangelho.

(continua)
























domingo, 22 de março de 2020

Dark Clouds, Deep Mercy (I)

Os adeptos da teologia da prosperidade olham para a dor como um resultado da falta de fé, dizem eles que Deus não quer que soframos, se determinada pessoa está doente ela pode ser curada, se tal não acontece o problema está nela e não em Deus ou na pessoa que a tenta curar. De uma só vez ignoram todos os textos acerca de Moisés, David e Jesus, para dar somente três exemplos. A fé para estas pessoas é a moeda de transacção para a felicidade e riqueza, a santificação (sem a qual ninguém pode ver Deus) é trocada pela prosperidade material e monetária. Tive em tempos uma conversa com um destes líderes religiosos, que desconhecia a Bíblia de forma atroz, que ignorava na prática o que significa exegese e que usava cada versículo como uma plataforma para uma oratória de cinco tostões ("palavras de poder" no seu entender) que contradizia vez após vez a mensagem bíblica - o importante não era a salvação, mas a sua satisfação material.

Ninguém no seu perfeito juízo quer sofrer, mas qual é o papel da dor e do sofrimento nas páginas das Escrituras? Mark Vroegop escreveu um excelente livro, Dark Clouds, Deep Mercy - Discovering the Grace of Lament, sobre isso e especificamente sobre o papel do lamento e das lamentações na vida dos crentes.

De uma forma geral, Vroegop descreve o lamento como o acto de levar as nossas tristezas e dores a Deus enquanto processamos essas mesmas dores, é sofrer coram Deo, é lamentar, chorar, admirar-se com o que aconteceu/acontece perante Deus, colocando esses assuntos aos Seus pés. Neste sentido, lamentar é unicamente Cristão.

"The practice of lament - the kind that is biblical, honest, and redemptive - is not natural for us, because every lament is a prayer. A statement of faith. Lament is the honest cry of a hurting heart wrestling with the paradox of pain and the promise of God´s goodness." p.26

O livro de Vroegop foi extremamente importante para mim, em situações que abanaram a minha fé e equilíbrio espiritual, leiam os textos acerca dos elevadores, neste mesmo blog e terão uma ideia. Há coisas que sabemos teoricamente e pensamos que nenhuma situação nos abalará, falava com um amigo acerca de uma verdade simples, aquilo que o pode derrubar não é o que me derrubará obrigatoriamente, quantas vezes olho para as circunstâncias de alguns irmãos e não percebo o que os atormenta tanto, porque determinadas áreas podem ser aquelas em que sou mais forte, e quantas vezes o contrário pode acontecer? Também aqui preciso de maior empatia para chorar com os que choram e rir com os que riem.

O lamento é então a oração na dor e em dor que leva à confiança em Deus, o lamento coloca questões como "onde estás, Deus?" e "se me amas, se estás aqui, porque deixas isto acontecer?"
O lamento é o percurso da dor à adoração e louvor.
A primeira parte do livro usa Salmos de Lamento (1/3 do saltério é composto por Salmos de Lamento) e intitula-se Aprender a Lamentar, de forma prática o autor divide o lamento em quatro acções:

1) dirige-te a Deus (Salmo 77)

Para um cristão a existência de Deus parece ser a verdade mais básica em que acredita, mas quantas vezes é que na dor e provações agimos como ateus? É nestas circunstâncias adversas que orar, falar com Deus parece ser um exercício impossível. Clamar a Deus no sofrimento é reconhecer a sua existência, ficar em silêncio perante Deus quando se sofre, i.e., ignorar a sua presença e poder, é a maior prova de descrença. O desespero vive da ideia que Deus não se preocupa, não ouve. 
O lamento direciona as nossas emoções, a nossa dor, as nossas questões e dúvidas a Deus, em vez de nos fecharmos em nós e nos mortificarmos em dor e pecado.

É preciso fé para vocalizar essa dor, esse espanto, as dúvidas pelas quais passamos.

"The biblical language of lament is able to redirect weeping people to what is true despite the valley they are walking through." p.36

O primeiro passo então é orar, que a minha acção seja linguagem em oração. Deus está presente.

2) traz as tuas queixas a Deus (Salmo 10)

O segundo passo é trazer as nossas queixas a Deus, Vroegop escreve que a piedade não é uma forma de estoicismo, sem queixa não há lamento, o sofrimento traz naturalmente ira, negação, desespero, amargura; perante aquilo em que acreditamos acerca de Deus e do Seu poder a alternativa é trazer as nossas queixas, as nossas dúvidas em oração.
Parafraseando o autor, o lamento é a linguagem de um povo que acredita na soberania de Deus mas vive num mundo de tragédias. Quão importante será nas actuais circunstâncias não perder isto de vista?

Por isso é importante trazer as nossas questões perante Deus - mesmo ou principalmente quando Deus parece distante - não é usual pensar ou achar que Deus parece esconder-se quando sofro? Desta forma as nossas questões devem lidar com o como é que (13:1-2; 35:17; 74:10; 94:3) e por que é que estas coisas acontecem (Salmo 22:1; 44:23-24; 80:12)?

Vroegop é assertivo, Deus não somente ouve, como lida com as nossas dores, medos, ira e desilusão, a nossa frustração e queixas são uma oportunidade de nos achegarmos a Deus e não de nos afastarmos Dele.

"I found that pain made me myopic. It tended to narrow my focus on the sorrow that took over my life. Nothing else mattered (...) With this desperation for relief, it was easy to become preoccupied with the weight of sorrow, the unfairness of life, or the fear of never being happy again. Left unchecked, this could create a self-focused emotional spiral. But as I wrote out my complaints and talked to the Lord about them, it was surprising how they lost their hold on me." p. 51

O lamento ensina-nos a pedir e confiar, a olhar para a queixa como um caminho para reorientar o meu pensamento e sentimentos; perceber que há uma forma correcta de nos queixarmos é importante,  como importante é fazê-lo com humildade, a forma  mais simples e segura de o fazer é orar a Bíblia, orar as queixas e dúvidas de servos de Deus e reconhecer que Jesus conhece as minhas dores e dificuldades (Hebreus 4:15). A queixa é um caminho para me aproximar de Deus.

3) pede a Deus com confiança (Salmo 22)

O terceiro ponto é para mim um ponto importante, confio em Deus, mas por isso às vezes oro com algum distanciamento, porque coloco as coisas nas suas mãos, sem exercitar muito a minha fé. É um paradoxo, eu sei, mas sou uma criatura de paradoxos. Assim, a petição feita a Deus deve ter como base o Seu carácter e as suas acções passadas, como Deus é e o que Deus fez no passado compele-nos a fazer pedidos corajosos, ou seja, os pedidos são feitos com base em quem Ele é e no que Ele prometeu.

"Yet means that I choose to keep asking God for help, to cry out to him for my needs, even when the pain of life is raw(...) Part of the grace of lament is the way it invites us to pray boldly even when we are bruised badly." p.59

O desespero da dor, em conjunto com o conhecimento do carácter de Deus, leva a pedidos corajosos, a verdade é que oramos de forma diferente quando passamos pela dor e estamos desesperados. 

"It shines a spotlight on our powerlessness to control everything." p.60

Vroegop deixa 9 tipos de pedidos para nos ajudar a compreender melhor este ponto.

1) Levanta-te, ó Deus (Sl. 3, 7, 9, 10, 17, 74, 94);
2) Ajuda-nos, Senhor (Sl. 60:11-12);
3) Lembra-te da tua Aliança (Sl. 25:6);
4) Que a justiça seja feita (Sl. 83:16-18);
5) Não te lembres dos nossos pecados (Sl. 51; 79:8-9);
6) Restaura-nos (Sl. 80:3);
7) Não fiques em Silêncio, ouve-me (Sl. 28:1-27; 86:6);
8) Ensina-me (Sl. 143:10; 90:12; 86:11);
9) Vinga-me (Sl. 35:23-24; I Pd. 2:23).

"Lament is an expansive prayer language". p.65

4) confia e louva a Deus (Salmo 13)
Finalmente, o último ponto.

"Suffering refines what we trust and how we talk about it." p.71

A dor pode tornar-se uma plataforma para a adoração, o sofrimento pode levar-nos à confiança. O sofrimento deve-nos levar à confiança permanente, a evitar a passividade espiritual.

O salmo 13 mostra lamentações de David baseadas no carácter de Deus, o "mas" mostra isso. A confiança não depende das circunstâncias.

"Learning to lament is a journey as we discover how lament can provide mercy when dark clouds loom. It is how we learn to sing and worship when suffering comes our way." p.84

O caminho do lamento não é feito na nossa força, é feito na dependência de Deus, no aprofundar do conhecimento Dele e da confiança Nele. Que nos maus momentos aprofundemos o nosso relacionamento com Deus orando, trazendo as nossas dúvidas e dificuldades aos seus pés para que a nossa fé e confiança aumentem à medida que saboreamos mais da Sua graça e misericórdia.



segunda-feira, 9 de março de 2020

Chico Bento - Arvorada é mais um excelente título de Graphic MSP. 

Arvorada segue o relacionamento do caipira Chico Bento com a sua Avó Dita, Orlandeli cria uma trama em que mostra a importância dos laços familiares, da forma como somos moldados e educados pelos que mais amamos.


O livro começa com a Avó Dita a chamar Chico para ver um ipê amarelo em flor, mas Chico troca a visão da árvore por um bolo quente. 

No dia seguinte, as flores caíram e o momento fugiu. A Avó explica-lhe que precisamos de parar para apreciar a beleza do que nos rodeia enquanto podemos. Num livro em que a vida do campo impera, há pequenos momentos para enxergar a beleza, da pesca ao saborear uma laranja, de nadar pelado no rio ou riacho a apanhar goiabas, mas Orlandeli não nos deixa ignorar os relacionamentos familiares e amizades de Chico Bento.



Arvorada lida com a morte ou com a presença desta, com o papel da avó como construtora ou co-construtora da personalidade de Chico, a forma como a família nos ensina, molda e educa. Arvorada é sobre a importância de pararmos e vermos a beleza na natureza, mas também sobre a importância de amarmos os que nos amam e rodeiam, de passarmos tempo com eles. 


A simplicidade da vida no campo, o valor das amizades, o medo de perder um ente querido, o amor e a dor, a vida e a morte, tudo é embrulhado numa arte que une o bucólico e o mitológico. Uma singela mas bela história de Chico Belo.














Jeremias - Pele

Graphic MSP é um selo da Editora Maurício de Sousa, publicado pela Panini. A ideia é editar Graphic Novels com personagens da Turma da Mônica para um público jovem-adulto. 



Jeremias de Rafael Calça e Jefferson Costa aborda a questão do racismo. 
Jeremias é uma criança que adora uma banda-desenhada específica, o Guardião da Noite, e sonha ser astronauta. 

O livro apresenta-nos um Jeremias feliz, no cinema e em casa, num relacionamento cúmplice com os pais, é na escola, quando a professora decide pedir aos alunos que vistam a pele de um profissional e escrevam uma redacção sobre o tema, que os problemas começam. Apesar de negro, Jeremias é um bom aluno, e escrevi apesar propositadamente, porque a professora não vê Jeremias, a sua inteligência, capacidade ou individualidade, a cor de Jeremias impede-a, alguns colegas ligam infundadamente o sucesso de Jeremias ao copianço. A professora distribui as profissões pelos alunos e Jeremias fica com a de pedreiro. É neste contexto que Jeremias vai confrontar-se com a diferença com que alguns o tratam, a cor leva a um tratamento distinto, a uma expectativa negativa. Mais à frente, o pai vai-lhe dizer que porque é negro terá de se esforçar mais, terá de ter mais cuidado no que diz, terá de ser duplamente paciente, duplamente esperto, terá de criar uma casca.


Jeremias - Pele é uma obra maravilhosa pela forma directa mas também terna (relativamente ao tratamento das personagens principais) como relata o racismo em diversas ocasiões,  a moça que não se senta no autocarro porque o único lugar vazio é ao lado de Jeremias, o pai de Jeremias que é mandado parar pela polícia só porque é preto; a reacção do pai, tentando explicar ao filho como reagir, mas que falha no tom ao reviver a sua experiência. O traço de Jefferson Costa traduz os sentimentos das personagens (a confusão, a ira, a estranheza, a decepção, a tristeza, a abnegação) de forma única e competente.


Há uma imagem que me fica, entre tantas, Jeremias a olhar para o lápis e caderno, que percebemos serem materiais que lhe são queridos, e o desenho mostra-os com um tamanho maior do que o normal, o que lhe é pedido pesa na criança que é e transtorna as suas paixões. Quantas vezes isto acontece na escola? 

Jeremias é instado pelo pai a criar uma casca, a banda desenhada mostra a importância da pele em contraste com a casca; a vergonha, a confusão, o medo, a coragem, o orgulho de Jeremias mostram como a pele é mais dorida e corajosa que a casca; Jeremias quer ser quem é apesar da visão que outros tenham da sua pele, é um caminho longo e doloroso, mas ele está disposto a lutar por isso!
Jeremias - Pele é uma obra genial pela forma como agarra o racismo pelos cornos, usando exemplos vividos próprios autores, Pele é realista, experiencial e o tom que adopta é fulcral no sucesso da história, a BD é usada em toda a sua força, com argumento e arte incisivos numa sinergia única.

Altamente recomendado.













segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Dersu Uzala


Um filme russo escrito e realizado por um japonês? Após um falhanço comercial (Dodeskaden) no seu Japão natal e das dificuldades consequentes em financiar os seus próximos projectos, que o levou quase ao suicídio, Kurosawa vai filmar Dersu Uzala à União Soviética, com promessas de total liberdade para o fazer.
O resultado é uma obra-prima, vencedora do Óscar para Melhor Filme Estrangeiro em 1976.



O filme é a adaptação de um livro de aventuras biográfico, que Kurosawa leu em adolescente e que tentava adaptar há anos, conta a história da amizade do capitão Vladimir Arseneiev, explorador nas regiões da Sibéria, com Dersu Uzala, um mongol, habitante da estepe. Um representante do mundo moderno aprende, surpreende-se, é discipulado por um velho que vive na e da natureza. O relacionamento entre os dois é o relacionamento entre mestre e discípulo, uma lição “ecológica” e humanista, Arseneiev aprende o estilo de vida de Dersu, que vive do que a natureza lhe dá, que a respeita, que fala com os seus elementos, os soldados riem quando o velho mongol fala com o fogo, o vento ou com o tigre, tudo na natureza é um ser com quem se pode dialogar. Mas um homem que mais do que modificar a natureza pelas suas necessidades, a usa em equilíbrio, e a sabe ler, Dersu vai ser importante para o grupo de homens ao saber quando o nevoeiro se levanta ou quando a chuva pára, um ser que vive à mercê da natureza sabe lê-la para sobreviver, não é apanhado desprevenido. O respeito pelo próximo está presente, por exemplo, na cena em que fabricam uma casa para se abrigarem, mas que deixam para outros, Dersu faz questão de deixar sal, comida e fósforos para o “outro” que por ali possa passar.
Kurosawa filma a estepe, a paisagem agreste e natural como ninguém, a cena em que os dois se perdem e são apanhados pela noite e pelo vento frio e em que rapidamente criam um abrigo é paradigmática, com a luz natural a desaparecer, mas continuamos no jogo de sombras e luz presente em todo o filme. Kurosawa filma os elementos naturais como ninguém, é comum na sua filmografia a presença destes na narrativa, não como algo que acontece, mas como movimentos narrativos, aqui não foge à regra.


Kurosawa filma as aventuras debaixo da ideia de que há um mundo a desaparecer, mais do que o mundo natural, é o mundo daquelas pessoas, o mundo interior, humano, social, animista que desaparece.
O filme termina com a morte de Dersu, incapaz de viver fechado em quatro paredes, incapaz de se adaptar à ausência da natureza numa grande cidade, Dersu sucumbe à ganância humana.
Poucas vezes se filmou a amizade desta forma, por agora, o meu filme favorito de Kurosawa, deixando Os Sete Samurais em segundo lugar!




terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

The Third Man

Li O Terceiro Homem de Graham Greene há mais de 20 anos, não sei se o sentimento que me deixou (acho-o mediano e o final expectável) foi resultado da qualidade do mesmo ou de desilusão ao lê-lo após O Fim da Aventura (esse sim foi uma revelação).
Acho que já vi parte do filme posteriormente, mas sem grande atenção, a atenção que merece.

Na Viena pós Segunda Guerra Mundial, Martins tenta descobrir a verdade sobre a morte de Harry Lime, com quem se ia encontrar, tentando descobrir quem é, se é que há, o terceiro homem na cena do crime de que ouviu falar.
O que me interessa menos em O Terceiro Homem é a trama, o que não quer dizer que esta não esteja bem urdida, que o mistério que se desvela seja essencialmente uma história de ambivalente moralidade, por parte de todos os protagonistas. Anna ama Lime apesar da sua natureza e práticas, Martins cai por Anna apesar dos sentimentos desta por Lime, e Lime está morto e nunca amou ninguém senão ele mesmo.
O que realmente me cativou foi a ambiência, a profundidade do preto e branco, a banda sonora (Anton Karas), o negro e as luzes, os planos citadinos e subterrâneos, as sombras, as vozes, o gato, o belíssimo plano final, sem palavras, em que Anna caminha na direcção de Martins.
E não, não vou, como a esposa pressagiou, demorar muito mais tempo a escrever sobre esta obra de Carol Reed. Se me parece que o filme conta a história do livro homónimo, conta-a de forma superior àquela que me lembro de ter lido e isso é culpa do realizador. O estilo, a cromática, a música, a ambiência tudo isso faz de O Terceiro Homem um grande clássico. E depois há as cenas icónicas, a cena final, a fuga final, e outras mais que não descrevo para não tirar prazer a quem veja o filme pela primeira vez.
Há quem lhe tenha chamado o melhor filme britânico de sempre. Vejam-no e tirem teimas.



Blackkklansman de Spike Lee


Blackkklansman de Spike Lee conta a história de Ron Stallworth (John David Washington), o primeiro polícia negro de Colorado Springs, que consegue "infiltrar-se" no Klu Klux Klan, na década de 1970, sendo negro e havendo vontade da organização em conhecê-lo é o detective Flip Zimmerman (Adam Driver) que toma o seu lugar, mantendo-se Ron como a mente e voz por trás da infiltração. A voz é motivo para várias piadas ao longo do filme, porque os supremacistas acham que conseguem identificar um negro seja pela voz, seja pela forma de falar.
Spike Lee realiza um filme sui generis na forma como trata a história, há uma série de coisas habituais em filmes sobre racismo que Lee não faz, há um caminho que acaba por não percorrer e o filme não perde com isso, pelo contrário. O que quero dizer com isto?
Ao terminar o filme pensava em Mississipi Burning que revi há uns meses, filme sobre crimes raciais, em que o background de criminosos e polícias é escalpelizado, há uma atenção à descrição da maneira de pensar, da "racionalização" por trás do racismo na mente do racista, o Sul racista é-nos tanto apresentado como definido. Mesmo The Green Book parece-me mais formatado, tanto na escrita, como nos momentos de humor, é mais expectável. Ora, Spike Lee perde algum tempo com a descrição psicológica das personagens, maioritariamente através das imagens, cabe ao espectador defini-las, mas não perde tanto tempo com a explicação do acto, antes filma-o em diversas nuances, há o racismo para com negros, mas também contra judeus, há o racismo explícito, mas também o velado, há o racismo presente nas forças policiais, mais ou menos tolerado ou esperado, mas há a presença também de membros do KKK no Governo ou em outras diversas instituições. Lee parece querer equilibrar o retrato da luta contra o racismo dando mais tempo de antena à cultura e luta negras, há uma apresentação e discussão dos filmes de black explotation, há discussões acerca das diversas formas de luta possíveis...
Lee usa o cinema, bem como a história do cinema, para contar a sua história, e usa The Birth of a Nation para ilustrar o êxtase do racismo. O cinema vende, mas também doutrina, e aqui Lee parece querer mostrar que pode usar o cinema de forma aparentemente menos doutrinária e dar-nos um filme que escorregando para a comédia, lida com assuntos tão divertidos como violência policial, racismo, abuso de poder, e fá-lo de forma objectiva. Ao nos dar uma história dos anos 1970 e terminar com imagens de 2017, Lee parece dizer que a realidade pouco mudou, que os problemas raciais continuam na ordem do dia. Não precisamos neste sentido de ver o que já vimos vezes sem conta, não precisamos de ser doutrinados, precisamos somente de abrir os olhos, que pode ser assustador, e agir. Aliás, a vitória de Ron dura muito pouco tempo, as pressões são diametralmente opostas ao tamanho das vitórias, a cultura, o respeito pelo outro, as mudanças demoram tempo a consolidar-se. Farto de pregar isto, Lee dá-nos uma história que fica a ressoar.

(Ando para aqui a remoer um texto sobre o humor em dois filmes de guerra, Stalag 17 e The Great Escape, e é difícil fugir à discussão do papel do humor neste filme, de que forma o humor transforma o modo como recebemos o filme no seu todo? Sem humor este filme seria bastante diferente. Lee está a rir dos racistas? Está a dar-nos uma visão, humana e ainda assim optimista, da luta racial?)




segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Brevíssimas de Cinema

Tenho definitivamente um problema com Jordan Peele.
Não consegui ficar fã de Get Out por considerá-lo uma cópia de Skeleton Key, a ciência é trocada pela magia e o enfoque no racismo é mais vincado no filme de Peele, por isso, o final deixou-me um sabor acre na boca. O que me parecia original afinal revelou-se uma repescagem.
US parece-me um filme superior em tudo ao anterior, boas interpretações, uma banda sonora apelativa, sentido de humor negro, uma visão cáustica da contemporaneidade, o mistério e a estranheza da narrativa, mas o final quase que deita o filme abaixo, é preguiçoso, não faz sentido e, em vez de me surpreender, confirmou-me as dificuldades que tenho com Peele, aprofundadas com os três episódios de Twilight Zone que vi e que me levaram a rever os originais.
Peele faz da raça tema de filmes de terror, o que é salutar, e fá-lo de forma interessante, incomodando o espectador, fazendo-o duvidar da realidade que vê, mas a forma como termina as narrativas irrita-me, parecendo querer puxar um Shymalan a cada momento diminui a qualidade do que criou até aí.


Gostei menos de The Marriage Story do que esperava, o contexto e determinados aspectos narrativos pareceram-me demasiado americanos, explicito, o contexto legal e litigioso é demasiado americano e quase que se torna o centro do filme - tirem os advogados e digam-me com o que ficam. Adam Driver é majestoso na interpretação. Num filme de actores (Liotta e Dern estão excelentes, ainda que me pareça que as personagens são serão do mais complicado que tenham representado, e para ser mais divisor, Scarlett Johanson não me convenceu) ele brilha com fulgor. Não vejo Kramer contra Kramer desde a década de 90, mas parece-me um filme mais equilibrado, realista e objectivo acerca do divórcio. É capaz de ser fruto de anos e anos a ver Bergman, Allen e outros a escreverem e realizarem filmes superiores sobre divórcios e relacionamentos conjugais.

The Two Popes é também um filme de actores, mais entradotes, em que a interpretação, nomeadamente a de Hopkins, pode ser vista mais como envelhecimento do que como arte. O passado de Bergoglio é mais escalpelizado, o de Ratzinger fica-se pela crítica fácil da opinião pública. O gelo germânico e o à vontade sul-americano entram em choque, tanto nos costumes e hábitos, como na visão teológica e nos relacionamentos.
Num filme com tanto para me desinteressar, Two Popes surpreende pelo sentido de humor e definição psicológica das personagens. Um estudo sobre as diferenças entre estes dois homens. 
Um católico dos 7 costados poderá ter bastantes mais problemas com a narrativa do que eu!