terça-feira, 13 de setembro de 2016

Ciclismo

Para o Tiago Cavaco, que me pediu o texto
Para o Timóteo Falcoeiras, por razões explicadas abaixo

Como é que um tipo anafado, adiposo ou corpulento, escolham vocês, sem qualquer capacidade de equilíbrio num veículo de duas rodas se torna fã de ciclismo? O desemprego tem um papel preponderante, mas não explica tudo.
Comecemos lá atrás, na infância. Os progenitores decidiram comprar uma bike, como era comummente conhecida na altura, ao irmão mais novo, passando por cima do fator etário. Fiquei chateado com o facto de não me ter sido dada a mim? Não! Na altura, como hoje, preferia um (vários, na verdade) livro a algo que se assemelhasse a exercício físico. O que não quer dizer que não tenha experimentado a bicicleta/bike do meu irmão. Conto dois episódios, marcados indelevelmente na minha memória.

A Paio Pires dos anos oitenta e noventa era marcada por campo e mato, onde hoje existem edifícios junto à Igreja Evangélica, na altura era campo e estradas de areia, polvilhadas por silvas. Um grupo de miúdos andava para a frente e para trás e era o terreno ideal para o meu irmão andar na bicicleta nova. Eu também quis. Ora, eu, em cima de uma bicicleta, sou o mais parecido com um Chaplin, Buster Keaton ou Tati em cima de uma bicicleta, volante para um lado, volante para o outro, mas sem a destreza e finesse destes. Resultado? Uma queda espetacular em cima das silvas. De um lado, o irmão mais novo agastado com as marcas que a bicicleta nova ostentava; do outro, o irmão mais velho, silvado por todo o corpo e roupa.

Montes Juntos, terra do avô, aldeia alentejana e raiana, próxima do Alandroal. Numa tarde quente de verão, o meu irmão, eu e o meu primo brincamos na estrada deserta, polvilhada de poias de vaca, a bicicleta passa de mão em mão. Subimos a estrada, que desce levemente até perto da entrada da casa de um tio, é a única casa nessa rua, do lado contrário, um muro acompanha toda a rua. É a minha vez, pego na bicicleta, monto, subo esforçadamente a rua e desço. Mais uma vez, a minha destreza faz com que a bicicleta vire para a direita e para a esquerda, ebriamente. Infelizmente, à minha frente, de costas para mim, caminha uma anciã, de roupas negras, baixa e lenta, segura a caminho da venda, ignota do veículo na sua direção. Relembro o ar assustado e divertido do meu irmão e do meu primo, imagino o meu ar. Em tempos pré GTA, falho a velhinha por uns míseros centímetros, batendo violentamente contra o muro, que me acolhe na sua dureza, impávido e sereno. Saio incólume, a bicicleta não tanto. Agastado, novamente, o meu irmão, proibiu-me de voltar a andar nela, pedido prontamente obedecido.

A distância entre mim e as bicicletas efetiva-se, durante anos estas desaparecem dos meus pensamentos, vou vendo uma etapa da Volta a Portugal e da Volta a Espanha aqui e acolá, sem grande ânimo ou gosto particular. Lá no fundo, uma inveja e admiração profundas por tipos que não só conseguem andar nelas, mas fazer daquilo carreira, correndo horas e horas em terreno plano ou íngreme.
Há quatro ou cinco anos, no Pinhal Novo, no terreno dos avós da Sara, nas tardes indolentes de verão, chapinhadas com a água do tanque, descanso o corpo no sofá e acompanho algumas etapas do Tour. Nasce ali qualquer coisa.
Como dizia, com o desemprego, em 2014, que aconteceu em Abril, tenho mais tempo livre e consigo sentar-me frente ao televisor a ver o Tour, a filha desespera, são duas ou três horas em que monopolizo o televisor, a ver uma valente "seca", "pessoas a andar de bicicleta!" A admiração transforma-se em prazer e vou acompanhando as diferentes provas que os canais da Eurosport transmitem. Não consigo ouvir outros comentadores, em canais nacionais, o pedantismo e falta de humor chocam com a familiaridade, humor e know how de Olivier Bonamici, Paulo Martins e Luís Piçarra. O pseudo-profissionalismo cinzento choca com a amizade e familiaridade destes três comentadores, que nos recebem como que amigos em sua casa. 

"Seca" deve ser o adjetivo que aqueles que me conhecem e falam comigo acerca de ciclismo mais aventam para descrever uma das minhas atividades favoritas, ver ciclismo. "Não sei como consegues!"
O ciclismo para mim é um misto de emoções e experiências, de um lado, o aspeto turista, os postais animados, polvilhados de castelos, palácios, montanhas, lagos, piscinas naturais, gado e pássaros; de outro lado, o trabalho em equipa, os vencedores das provas de World Tour de três semanas não são nada sem a equipa, escolhida a dedo, que vai trabalhando em prol deles, muitas das vezes sem que o foco do holofote caia sobre estes corredores. Alguém que acompanhe minimamente as provas de ciclismo sabe o nome de alguns dos grandes ciclistas, mas ignora o nome dos que fazem o trabalho de "sapa". Esse é um dos aspetos que mais me fascina no ciclismo, um trabalho de equipa em prol de um corredor, de uma estratégia, de um fim. O esforço titânico de manter um colega em corrida, por vezes, em esforço mútuo, para que ele chegue ao fim em condições de ganhar ou a etapa ou a corrida.  A forma desinteressada como depois do trabalho feito se levanta o pé, diminuindo a velocidade, consciente do trabalho feito. 
Por outro lado, o ciclismo assemelha-se a um jogo de xadrez com pessoas montadas em bicicletas, quando atacar, quando defender a posição, quando impedir uma fuga? O Tour deste ano foi um bocadinho uma seca, porque o trabalho da Sky foi tão bom que impediu grandes surpresas entre os candidatos à vitória final, ninguém quis arriscar com medo do que lhe pudesse acontecer e Froome ganhou sem grandes dificuldades, mesmo tendo corrido a pé, à espera de uma bicicleta, depois de uma queda numa das etapas. 


Há outra coisa, mais maliciosa, que me excita, as quedas. Não têm piada nenhuma, algumas são mortais ou perigosas o suficiente para acabar com a temporada ou carreira de um ciclista, mas são mais um condimento espetacular de um desporto que consegue, por causa delas, ser mais imprevisível do que outros.


No entanto, o ciclismo não se limita, para mim, às transmissões televisivas, vou lendo livros, revistas e artigos sobre ciclismo. Uma das coisas que mais me surpreendeu, inicialmente, foi a capacidade e destreza de alguns autores a escreverem sobre ciclismo, a descrição das etapas, por exemplo, Richard Moore em Étape, consegue ser um mimo literário, a capacidade de nos emocionar, ver o que não vimos, comparar com os vídeos no You Tube; a descrição psicológica e emocional dos ciclistas em The Yellow Jersey Club de Edward Pickering, tem aumentado o meu amor e respeito pela modalidade. Há um livro que guardo na minha coleção com fervor e devoção, Legends of the Tour de Jan Cleijne, um livro de BD, com a história do Tour, brilhantemente desenhado e com o fervor próprio de um amante e praticante amador da modalidade. 


Mas o ciclismo não é feito de vitórias somente, Lanterne Rouge, um livro de Max Leonard, relata as vivências e derrotas dos lanternas vermelhas na prova francesa. Um desporto que dá atenção aos vencedores, mas também aos vencidos, muitas vezes, como já escrevi, responsáveis pelas vitórias dos líderes de equipa. 

E o doping? "Eles são todos drogados.", dizem-me amiúde. Lembro-me de ver, admirado, Armstrong a subir montanhas como se de uma descida se tratasse. Passo ao lado, claro que a realidade é muitas vezes negra, muitos correram ao longo das décadas dopados, mas não querendo enterrar a cabeça na areia, é algo a que não dou importância, já li um ou dois livros que tratam especificamente sobre essa questão, mas parece-me pornografia. Tratam do assunto, mas encontram em Lance Armstrong o bode expiatório, chafurdam nele e ignoram o estado calamitoso do desporto nessas épocas. 
Vou confiando, quiçá infantilmente, nas medidas anti-doping e deliciando-me com a competição ao longo do ano. As provas de um dia, de três ou cinco, as grandes provas de três semanas, as provas específicas, como o Paris-Roubaix - o inferno do norte deliciam-me, a mim que não consigo andar em cima de uma bicicleta sem a espatifar ou quebrar alguns ossos. 
Um paradoxo, este, semelhante ao de tantos que se sentam num sofá ou cadeira de café, a ver 22 tipos atrás de um bola, admirados com as fintas e os golos, sem conseguirem correr cinco minutos, fazer uma trivela ou dar 3 toques consecutivos numa bola.

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