domingo, 22 de março de 2020

Dark Clouds, Deep Mercy (I)

Os adeptos da teologia da prosperidade olham para a dor como um resultado da falta de fé, dizem eles que Deus não quer que soframos, se determinada pessoa está doente ela pode ser curada, se tal não acontece o problema está nela e não em Deus ou na pessoa que a tenta curar. De uma só vez ignoram todos os textos acerca de Moisés, David e Jesus, para dar somente três exemplos. A fé para estas pessoas é a moeda de transacção para a felicidade e riqueza, a santificação (sem a qual ninguém pode ver Deus) é trocada pela prosperidade material e monetária. Tive em tempos uma conversa com um destes líderes religiosos, que desconhecia a Bíblia de forma atroz, que ignorava na prática o que significa exegese e que usava cada versículo como uma plataforma para uma oratória de cinco tostões ("palavras de poder" no seu entender) que contradizia vez após vez a mensagem bíblica - o importante não era a salvação, mas a sua satisfação material.

Ninguém no seu perfeito juízo quer sofrer, mas qual é o papel da dor e do sofrimento nas páginas das Escrituras? Mark Vroegop escreveu um excelente livro, Dark Clouds, Deep Mercy - Discovering the Grace of Lament, sobre isso e especificamente sobre o papel do lamento e das lamentações na vida dos crentes.

De uma forma geral, Vroegop descreve o lamento como o acto de levar as nossas tristezas e dores a Deus enquanto processamos essas mesmas dores, é sofrer coram Deo, é lamentar, chorar, admirar-se com o que aconteceu/acontece perante Deus, colocando esses assuntos aos Seus pés. Neste sentido, lamentar é unicamente Cristão.

"The practice of lament - the kind that is biblical, honest, and redemptive - is not natural for us, because every lament is a prayer. A statement of faith. Lament is the honest cry of a hurting heart wrestling with the paradox of pain and the promise of God´s goodness." p.26

O livro de Vroegop foi extremamente importante para mim, em situações que abanaram a minha fé e equilíbrio espiritual, leiam os textos acerca dos elevadores, neste mesmo blog e terão uma ideia. Há coisas que sabemos teoricamente e pensamos que nenhuma situação nos abalará, falava com um amigo acerca de uma verdade simples, aquilo que o pode derrubar não é o que me derrubará obrigatoriamente, quantas vezes olho para as circunstâncias de alguns irmãos e não percebo o que os atormenta tanto, porque determinadas áreas podem ser aquelas em que sou mais forte, e quantas vezes o contrário pode acontecer? Também aqui preciso de maior empatia para chorar com os que choram e rir com os que riem.

O lamento é então a oração na dor e em dor que leva à confiança em Deus, o lamento coloca questões como "onde estás, Deus?" e "se me amas, se estás aqui, porque deixas isto acontecer?"
O lamento é o percurso da dor à adoração e louvor.
A primeira parte do livro usa Salmos de Lamento (1/3 do saltério é composto por Salmos de Lamento) e intitula-se Aprender a Lamentar, de forma prática o autor divide o lamento em quatro acções:

1) dirige-te a Deus (Salmo 77)

Para um cristão a existência de Deus parece ser a verdade mais básica em que acredita, mas quantas vezes é que na dor e provações agimos como ateus? É nestas circunstâncias adversas que orar, falar com Deus parece ser um exercício impossível. Clamar a Deus no sofrimento é reconhecer a sua existência, ficar em silêncio perante Deus quando se sofre, i.e., ignorar a sua presença e poder, é a maior prova de descrença. O desespero vive da ideia que Deus não se preocupa, não ouve. 
O lamento direciona as nossas emoções, a nossa dor, as nossas questões e dúvidas a Deus, em vez de nos fecharmos em nós e nos mortificarmos em dor e pecado.

É preciso fé para vocalizar essa dor, esse espanto, as dúvidas pelas quais passamos.

"The biblical language of lament is able to redirect weeping people to what is true despite the valley they are walking through." p.36

O primeiro passo então é orar, que a minha acção seja linguagem em oração. Deus está presente.

2) traz as tuas queixas a Deus (Salmo 10)

O segundo passo é trazer as nossas queixas a Deus, Vroegop escreve que a piedade não é uma forma de estoicismo, sem queixa não há lamento, o sofrimento traz naturalmente ira, negação, desespero, amargura; perante aquilo em que acreditamos acerca de Deus e do Seu poder a alternativa é trazer as nossas queixas, as nossas dúvidas em oração.
Parafraseando o autor, o lamento é a linguagem de um povo que acredita na soberania de Deus mas vive num mundo de tragédias. Quão importante será nas actuais circunstâncias não perder isto de vista?

Por isso é importante trazer as nossas questões perante Deus - mesmo ou principalmente quando Deus parece distante - não é usual pensar ou achar que Deus parece esconder-se quando sofro? Desta forma as nossas questões devem lidar com o como é que (13:1-2; 35:17; 74:10; 94:3) e por que é que estas coisas acontecem (Salmo 22:1; 44:23-24; 80:12)?

Vroegop é assertivo, Deus não somente ouve, como lida com as nossas dores, medos, ira e desilusão, a nossa frustração e queixas são uma oportunidade de nos achegarmos a Deus e não de nos afastarmos Dele.

"I found that pain made me myopic. It tended to narrow my focus on the sorrow that took over my life. Nothing else mattered (...) With this desperation for relief, it was easy to become preoccupied with the weight of sorrow, the unfairness of life, or the fear of never being happy again. Left unchecked, this could create a self-focused emotional spiral. But as I wrote out my complaints and talked to the Lord about them, it was surprising how they lost their hold on me." p. 51

O lamento ensina-nos a pedir e confiar, a olhar para a queixa como um caminho para reorientar o meu pensamento e sentimentos; perceber que há uma forma correcta de nos queixarmos é importante,  como importante é fazê-lo com humildade, a forma  mais simples e segura de o fazer é orar a Bíblia, orar as queixas e dúvidas de servos de Deus e reconhecer que Jesus conhece as minhas dores e dificuldades (Hebreus 4:15). A queixa é um caminho para me aproximar de Deus.

3) pede a Deus com confiança (Salmo 22)

O terceiro ponto é para mim um ponto importante, confio em Deus, mas por isso às vezes oro com algum distanciamento, porque coloco as coisas nas suas mãos, sem exercitar muito a minha fé. É um paradoxo, eu sei, mas sou uma criatura de paradoxos. Assim, a petição feita a Deus deve ter como base o Seu carácter e as suas acções passadas, como Deus é e o que Deus fez no passado compele-nos a fazer pedidos corajosos, ou seja, os pedidos são feitos com base em quem Ele é e no que Ele prometeu.

"Yet means that I choose to keep asking God for help, to cry out to him for my needs, even when the pain of life is raw(...) Part of the grace of lament is the way it invites us to pray boldly even when we are bruised badly." p.59

O desespero da dor, em conjunto com o conhecimento do carácter de Deus, leva a pedidos corajosos, a verdade é que oramos de forma diferente quando passamos pela dor e estamos desesperados. 

"It shines a spotlight on our powerlessness to control everything." p.60

Vroegop deixa 9 tipos de pedidos para nos ajudar a compreender melhor este ponto.

1) Levanta-te, ó Deus (Sl. 3, 7, 9, 10, 17, 74, 94);
2) Ajuda-nos, Senhor (Sl. 60:11-12);
3) Lembra-te da tua Aliança (Sl. 25:6);
4) Que a justiça seja feita (Sl. 83:16-18);
5) Não te lembres dos nossos pecados (Sl. 51; 79:8-9);
6) Restaura-nos (Sl. 80:3);
7) Não fiques em Silêncio, ouve-me (Sl. 28:1-27; 86:6);
8) Ensina-me (Sl. 143:10; 90:12; 86:11);
9) Vinga-me (Sl. 35:23-24; I Pd. 2:23).

"Lament is an expansive prayer language". p.65

4) confia e louva a Deus (Salmo 13)
Finalmente, o último ponto.

"Suffering refines what we trust and how we talk about it." p.71

A dor pode tornar-se uma plataforma para a adoração, o sofrimento pode levar-nos à confiança. O sofrimento deve-nos levar à confiança permanente, a evitar a passividade espiritual.

O salmo 13 mostra lamentações de David baseadas no carácter de Deus, o "mas" mostra isso. A confiança não depende das circunstâncias.

"Learning to lament is a journey as we discover how lament can provide mercy when dark clouds loom. It is how we learn to sing and worship when suffering comes our way." p.84

O caminho do lamento não é feito na nossa força, é feito na dependência de Deus, no aprofundar do conhecimento Dele e da confiança Nele. Que nos maus momentos aprofundemos o nosso relacionamento com Deus orando, trazendo as nossas dúvidas e dificuldades aos seus pés para que a nossa fé e confiança aumentem à medida que saboreamos mais da Sua graça e misericórdia.



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