terça-feira, 2 de outubro de 2018

A noite desce rapidamente. Os últimos raios de sol já não aqueciam, alumiavam timidamente o território invadido rapidamente pela penumbra. No quintal ainda nenhuma luz eléctrica, ao fundo via-se a raia, espanhola e alentejana, os pássaros cantavam alto em busca de refúgio em algumas azinheiras e oliveiras. O frio levou-o a entrar em casa, aquecida pela lareira, que servia não só para os aquecer, mas também para cozinhar um cozido de grão em panelas de barro.
A avó, viúva e só, quase todo o ano, dividia-se em tarefas caseiras, a mãe ajudava-a. Batem à porta, um tio de noventa anos entra com ar jovial e aquentado pelos copos de vinho tinto. Tem uma simpatia especial por este Tio, Domingos de seu nome, vê-o descer a rua, mora no monte ao lado da vacaria, vem direito que nem um fuso, gosta de vê-lo subir a rua, encostado ao muro para que o álcool o não derrube. Uma vida estranha esta, passada entre a casa, em que nunca entrou, e a taberna, onde há uns chocolates espanhóis.
Durante a tarde viu um pardal não se desviar a tempo de uma carrinha de caixa aberta, apanhou-o já morto e deu-o ao pai, “sem flobber, uh?”. Viu o ritual do pai, a que está habituado, depenar o bicho, cortar-lhe a cabeça, abri-lo ao meio. Juntou o pardal a outros pássaros que foi apanhando com a pressão de ar, uma tarde destas serão o petisco, fritos em alho e azeite.
Falam do acontecido com o pássaro, o tio olha-o sério e diz-lhe se foi a primeira vez que viu tal coisa, “um pássaro atropelado”. Ri-se nervosamente, diz que sim.
-Não é o mesmo, sabes, mas o meu bisavô dizia que quando um pássaro bate contra uma janela e morre, há alguém que morre.
Os adultos olham para ele, que sorri nervosamente.
-Ti Domingos, porquê? Há tanta gente a morrer e não vejo assim tantos pássaros a bater contra as janelas.
-Estas são mortes especiais, encomendadas.
Continua a história com um gesto, despeja o copo de vinho tinto, olhando-o nos olhos e terminando a despejar umas gotas de vinho em cima do pão.
Acordou com o carpir de algumas vizinhas, o Ti Domingos morreu durante a noite. Aquela conversa estranha fica-lhe na memória e liga-a à morte do tio. Um pardal a fazer de Valquíria, levando a alma do tio para outro lugar, no Alentejo não se deve chamar Valhalla.
Lembrou-se desta história hoje, entrou-lhe um pardal em casa, pela janela aberta. Assustado, tentou voltar à liberdade, matando-se contra as janelas. Já não pensava no Ti Domingos há mais de trinta anos.

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