quinta-feira, 8 de junho de 2017

Março 2014


Montejuntos (ou Montes Juntos) é uma pequena aldeia pespegada junto à fronteira. Ao lado corria-lhe, só e orgulhoso, o Guadiana, hoje vê-se água como nunca se viu, como se a água do dilúvio teimasse em secar, o Alqueva serve de moldura a uma paisagem ora verdejante, ora amarela ressequida, a tender no fim do verão para o castanho seco, quente.
Montejuntos sempre esteve demasiado longe e ao mesmo tempo perto. A viagem durava quase quatro horas (hoje a viagem faz-se entre duas e duas horas e meia), horas em que a cassete de cante alentejano do progenitor dava a volta várias vezes, a minha humilde cultura musical no que ao cante diz respeito é fruto dessas viagens. Vendo Monsaraz o coração batia mais forte, a viagem aproximava-se do fim, a estrada agora acompanhava as aldeias distribuídas ao longo do campo, sprint final duma corrida muitas das vezes noturna.
Os topónimos são-me familiares, Évora, Reguengos, Monsaraz, São Pedro do Corval, Motrinos, Cabeça de Carneiro, mas também Vila Viçosa, Mourão, Terena, Barragem do Lucefécit, são etapas da viagem, de viagens, são locais presentes nas conversas, nas vidas que ali habita(va)m.
A aldeia é pequena, um largo com três cafés, duas mercearias, cafés que, na minha infância, eram o ponto de encontro de todos os homens da aldeia, velhos e novos, habituei-me a ver ali os anciãos a dar dois dedos de conversa e despejar outros dois dedos de tinto, de cigarro ao canto da boca. Hoje os cafés estão vazios, a gente é pouca, a vida é feita a alguns, vários, muitos, quilómetros, o fim de semana enche a aldeia de vida, incha-a um pouco, por um pouco. Os velhos da minha infância já não moram ali, foram morrendo, alguns com idades bonitas, já não vejo muitas das caras e corpos presentes na minha memória. A aldeia despojou-se de gente, mas o largo continua igual, caiado de branco, nenhuma casa nova, a fotografia mental corresponde ao que vi.
Montejuntos era o tio Chico, um homem grande, de sorriso fácil, amoroso e duro. Que amava os sobrinhos, que se pelava por os ter ali. Lembro-me de ir com ele à água, na carroça puxada pelo Manjerico, um burro que habitou toda a minha infância e um pouco mais além. Um homem do campo, que ali toda a vida labutou, que cuidou de gado, passámos um natal numa herdade com ele, uma casa enorme, gigante, fria, incómoda (num inverno dos mais frios e chuvosos que que tenho memória) mas que habita ainda as minhas memórias mais quentes. O Tio Chico que nunca nos deixou fazer amizade com as ovelhas, não são animais de estimação, de casa, são de sustento. O tio Chico que vi uma última vez, sem uma perna por causa dos diabetes, já cego, apertando-me sem me poder ver, a mim de lágrima ao canto do olho, a despedir-me antecipadamente. Ontem, revi com alegria a Ti Antónia, metro e meio de mulher, viúva, mas mulher grande, divertida, afável, e vi o meu tio Chico, no filho, também ele Chico.
Os verões eram quentes, alguns pareciam chapa em lume, antes de almoço éramos irradiados do mundo, enfiados dentro de casa, podíamos descer rapidamente a rua até casa do Tio Chico, mas o sol, o calor, o suor impedia-nos de estar na rua, quase sempre com uma bola, onde as vacas passavam de manhã e à tardinha rumo à vacaria, hoje já não há vacas, a vacaria é um espaço vazio, um espectro de uma realidade ainda minha vizinha. Os verões eram as escondidas à noite, entre as crianças da aldeia e os primos, sobrinhos que ali passavam uma temporada.
Os verões eram a pesca ou a caça dos adultos, acompanhados em brincadeiras petizes. Dormi várias vezes num moinho, passando ali o dia, dentro de água, de rabo para o ar à procura de espargos, respirando o ar puro do campo, vendo Espanha do outro lado da margem. Espanha era no outro lado da margem, era no monte que se via ali ao longe, sentado no muro, onde parti o pulso na véspera de fazer anos, mil novecentos e oitenta e sete? ou nove? Tiago, desce do muro que partes um braço. Tiago, desce. Já não ouvia o meu avô, nenhum neto ouvia, ele antecipava tragédias, um passo dado por nós era desculpa para um aviso, dito, repetido, ecoado durante largos momentos. Tiago desce do muro. Avô, se partir um braço fico com outro. Fiquei com os dois, a bem dizer, verdade das verdades, mas no dia seguinte soprei as velas de braço ao peito e o avô repetia Eu disse-te, não te avisei? Espanha era também na televisão, a TVE e a Antena 3, os jogos do Real e do Barcelona, também do Futre no Atlético. Era estar com os primos, na rua, dentro de casa, sempre juntos.
Montejuntos era a festa, vacas na praça, rifas, chuva. Ainda hoje as vacas estão ali, uma vez por ano, a correr atrás dos rapazes, toda a aldeia unida em torno daqueles animais, lembro-me duma a entrar por uma porta, gritos femininos, louça a partir-se, e regressar à lida da festa, atrás de rapazes, de homens, homens e mulheres empoleirados em troncos, em “carros”, a comer, a rir, a rever família.
Montejuntos é uma pequena aldeia com largos, imensos laços familiares. A cada passo, a cada esquina, a cada novo dia cumprimentava um parente. Ontem, de todos aqueles que vi e com quem falei, dois ou três não eram familiares, mas alegraram-se em me ver, em me reconhecer, um sorriso largo, memórias de um passado recente, a mim afluíram-me várias. E eu, qual filho pródigo, que em dez anos ali fui, o quê?, cinco, seis vezes? a mim reconheceram-me melhor do que à minha mãe que duas, três, quatro vezes, todos os anos visita a terra, a família. Um primo, envelhecido, esqueci-me do nome dele, dá-me um passou bem e trata-me pelo nome. Montejuntos é isto, é família, um local que é casa, mesmo que já não a reconheçamos, que não visitemos como deveríamos, uma casa onde a família é incansável, onde cuida de nós de modos que nos, a mim, pelo menos, envergonha. Onde todos são família, mesmo não o sendo.
Ontem lembrei-me do brunhol, que é o mesmo que dizer farturas, de manhã, no largo da aldeia, feito por uma prima. Lembro-me de pequeno-almoçar leite, ou tofina, ou brasa com brunhol. Ontem, trouxe filhoses, nógado, doces caseiros, tradições carnavalescas, mas também trouxe chouriços, chouriças, farinheiras, um peru inteiro, envergonhado pelo carinho, amor, cuidado que a família nos dispensa.
Montejuntos é lá longe, tão longe que por vezes me esqueço, é tão perto, está tão dentro de mim… ontem voltei por três horas, visita rápida, mas as memórias encheram a barriga, o coração relembrou-se disto, daquilo e de pessoas que habitaram a minha vida.
Montejuntos é uma aldeia pequena, mas é tão grande, tão grande…

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