sábado, 21 de setembro de 2019

Unbelievable


A Netflix anda a surpreender-me pela negativa no que à oferta de séries de qualidade diz respeito, tenho visto alguma junk tv, Os assassinos Wu é disso um bom exemplo, uma série de 10 episódios que se limita a dar boa e contemporânea pancadaria, mas séries que se distingam pela qualidade da escrita, interpretações e produção têm escasseado(também pode ser o meu mau génio a falar). Por isso, estava indeciso, o que é que vou ver? Dediquei-me ao passatempo usual de ver um bocado disto, um bocado daquilo até o torpor, o tédio ou o mau gosto me vencerem por completo. Desta vez, à segunda tentativa fiquei agarrado ao ecrã e a esposa, que estava ao computador, foi-se voltando para o ecrã até que, vencida, se sentou ao meu lado. 

Os crimes sexuais, nomeadamente a violação, não estão ausentes do cinema ou da televisão, assim de repente lembro-me de um filme com Jodie Foster, Os acusados, e alguns episódios de Lei e Ordem, e seus sucedâneos, isto para  não nomear Irréversible, mas somos capazes de voltar a este.

Unbelievable conta, em oito episódios, a história da violação Marie Adler (Kaitlyn Dever), em Washington, que será acusada de falso testemunho, e da investigação das Detectives Grace Rasmussen (Toni Collette) e Karen Duvall (Merritt Wever) sobre casos de violação no Colorado.



Unbelievable é objectiva o suficiente para nos incomodar, sem nos dar o acto em si como Irréversible; em vez de nos apresentar o acto como algo abjecto e visível, apresenta-nos o acto e os efeitos deste na vida das suas vítimas, especificamente na vida de Marie Adler.
Adler é um caso específico, estando no sistema de adopção americano é apresentada como uma jovem com um passado problemático, passado que em nada a ajudará, principalmente na percepção que os polícias, mas principalmente quem melhor a conhece, farão do seu relato. 
Esta luta entre confessar o acontecido e acreditar no que é dito, muitas das vezes por causa da resposta corporal, psicológica, emocional é brutalmente apresentada, como acreditar em alguém com um passado tão extenso e que já provou não ser confiável? Quando a própria "família" desconfia, o que podemos fazer senão desconfiar?
 O primeiro episódio apresenta-nos a via árdua de uma vítima de violação perante um corpo policial totalmente masculino, Marie terá de contar o que lhe aconteceu vez após vez, mostrando-nos o transtorno, a dor, a tentativa de se alhear do sofrimento presente impedida por mais um pedido de repetição do acontecido. Quando chegamos ao segundo episódio e vemos o mesmo acontecer, mas agora com uma mulher a dirigir o processo vemos uma maior humanidade e empatia num processo duro, longo e violento.
As duas detectives, opostas na maneira de ser e sentir, são-nos apresentadas separadamente, investigando crimes de violação que lentamente começam a convergir numa só investigação. 
A fé de Duvall e a incapacidade crescente de gerir o ritmo familiar, fugindo ao clichés habituais de problemas familiares e traição, encontram o negativo na crítica humanista de Rasmussen à existência de Deus num mundo de assassinos, violadores e crimes violentos. Se a série começa por ser sobre Adler, quando nos apresenta às detectives, traz também as experiências de muitas outras mulheres violadas, e a transformação do mundo familiar das detectives por conta desta investigação. 

A série irritou-me (positivamente) pela forma lenta como vai contando a história, a irritação nasce do sentimento de incapacidade que o espectador sente perante o que se vai desenrolando e também pela forma lenta como as três, depois duas histórias se vão afastando e aproximando. A forma como a história é contada e filmada, sem chegar à obscenidade crua do acto de Irreversible, mas mostrando o suficiente para incomodar o espectador, deixa-nos perceber o interior (tumultuoso, no caso de Adler) das personagens, muitas das vezes somente através de um grande plano, de uma expressão, do vazio do olhar, do tremer da mãos, de um karaoke no carro!

Enfim, um exemplo maior de um excelente casting, as três protagonistas são excelentes, de uma escrita cirúrgica e de uma óptima realização.
O que surpreende em Unbelievable é a capacidade de não ceder facilmente à fórmula "Hollywoodiana" de criar celeuma, de chocar gratuitamente, de ser unidimensional e facciosa. Não há tempo de antena e glorificação nem do crime, nem do criminoso; a série tenta documentar mais do que teatralizar no sentido de condicionar a nossa opinião acerca do sucedido.

A crítica velada à forma como construímos ideias e preconceitos, como julgamos com base em pressupostos é certeira, a maneira como reagimos às injustiças ou como reconhecemos os nossos erros culminam num final que sendo real e moralista, não se fecha ou redunda numa moralidade construída para convencer ou transformar o espectador. O espectador é transformado porque percebe que o final não é um artifício narrativo, mas uma realidade vivida.

Uma das grandes séries deste ano, e que ajuda a esquecer a má colheita dos últimos meses Netflexianos.









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