sábado, 21 de setembro de 2019

Andamos por aqui e por ali,
sem saber bem porquê.
Somos levados pela melancolia,
pelo desespero,
toldados pela tristeza.
Encontraste-me ali,
quieto e só,
parado e cinzento.
Talvez tenhas pulado, falado muito,
talvez,
talvez tenhas dançado, gritado,
talvez,
mas foi o teu sorriso que me fez sair
da rua da amargura.
2011

segunda-feira, 29 de julho de 2019

The Power of Christian Contentment


The Power of Christian Contentment – Finding Deeper, Richer Christ-Centered Joy de Andrew Davis tem como base The Rare Jewel of Christian Contentment de Jeremiah Burroughs e versa sobre contentamento/satisfação. 

O livro está dividido em quatro partes: 
1)      o segredo do contentamento;
2)      como encontrar contentamento;
3)      o valor do contentamento;

4)      mantendo o contentamento.

Antes, durante e depois da leitura do livro houve um corinho que me veio à mente diversas vezes, apesar de sentir que o conteúdo do livro é mais profundo do que as quatro estrofes relembradas. 

Satisfação é ter a Cristo
Não há melhor prazer já visto
Sou de Jesus e agora eu sinto
Satisfação sem fim

Satisfação é nova vida
Eu com Jesus em alegria
Sempre cantando a melodia
Satisfação sem fim

Sim, paz real
Sim, gozo na aflição
Achei o segredo
É Cristo no coração

Satisfação é não ter medo
Pois meu Jesus, virá bem cedo
Logo, em glória, eu hei de vê-lo
Satisfação sem fim

Sendo um livro que tem como base uma obra puritana, o autor apresenta diversas listas ou pontos práticos para "levar a água ao nosso moinho", à semelhança dos puritanos o objectivo é não só apresentar algumas doutrinas, mas também mostrar o aspecto prático delas e a forma como as posso colocar em prática diariamente, i.e., da mente (compreensão) ao coração (afeições) e deste para a acção.

Na primeira parte, o autor defende que o mundo é marcado pelo descontentamento (as pessoas nunca estão verdadeiramente satisfeitas) e que o plano divino para os Cristãos passa muitas vezes pela existência de provações e por contentamento em Deus nestas ou apesar destas.

“Yet despite the value of this rich, full, continual contentment, and despite the fact that it is possible for every Christian in the world to experience it, this exquisite jewel is rare in our own lives. And how desperately the unsaved world needs Cristians to discover it.” p.14
Davis vai mais fundo, se o descontentamento de descrentes não surpreenderá cristãos, “the great tragedy is that so often we don´t really seem to live much differently. Many Christians hardly ever experience the daily foretaste of heaven that the Holy Spirit lives within us provide.” p.15

"Many Christians have such discontent lives that they are never asked by any of the similarly discontent unbelievers surrounding them to give a reason for the hope that they have (I Pd. 3:15), because they don´t evidently have any hope.” p.16

Acusei a pancada, lembrei-me de amigos descrentes em acampamentos estranharem alguns dos paradoxos cristãos, gozando com eles ou demonstrando estranheza por aceitarmos determinadas lógicas. 
Que diga o fraco forte sou
Diga o pobre rico estou
Por aquilo que Ele fez por nós.
Perceber que alguns notam esta pseudo-esquizofrenia nos que acreditam em Deus esbarra de frente com a acusação do autor de que não estaremos a viver uma vida satisfeita, antes pelo contrário, a vida de alguns de nós é pouco diferente da daqueles que não foram salvos por Cristo. Que frutos tem dado a minha vida, não deveria colocar o adjectivo à frente, mas lá vai, cristã? Encontro verdadeira satisfação em Cristo, ou cantarolo somente as mesmas linhas do cântico acima referido? Posso convencer alguém somente com base no que acredito, sem o praticar?

O que é, então, contentamento?
A definição, baseada em Burroughs, é a de encontrar prazer no plano sábio de Deus para a minha vida e humildemente deixar que Ele me dirija nela, de modo que Deus seja glorificado diariamente na minha vida, para que eu seja mais alegre e fonte de salvação para outros através do contentamento mostrado. Estes são dois dos pontos mais repetidos (e relevantes para mim) ao longo o livro, contentamento tem tudo a ver com providência e uma vida satisfeita (o contentamento cristão) serve de exemplo para os que estão à minha volta. 

O segundo capítulo foca o ensino de Paulo acerca do contentamento, nomeadamente com base em Filipenses 2: 12-16.
“As despairing lost people look on and see a buoyant peace and joy that is not based on favorable earthly circumstances but rather on faith in Christ, they will ask “you for a reason for the hope that is in you” (I Pd3:15). That hope shines most brilliantly when earthly circumstances are darkest, and the rare jewel of Christian contentment is a radiant source of that light.” p.25

“He who has God and everything else has no more than he who has God alone.”
 C.S. Lewis
“If we embrace that we have within our relationship with Christ everything we need for peace and joy at every single moment of our brief span here on earth, imagine how free we would be, in all our relationships, from self-giving clinginess or desperation.” p.33
 O meu relacionamento com Cristo é vivo e satisfatório no sentido de me contentar? Já passei da compreensão da verdade para a transformação das minhas afeições e para a prática e acção?

Na segunda parte, a definição de contentamento cristão é aprofundada, este é uma obra da salvação contínua pela graça através da fé, “é um milagre da graça soberana agindo com uma alma regenerada. Deus terá a  glória, nós a alegria.” p. 45
Davis explica ponto a ponto a definição de Burroughs,

“Christian Contentment is that sweet, inward, quiet, gracious frame of spirit which freely submits to and delights in God´s wise and fatherly disposal in every condition.”


Assim, o contentamento é uma atitude/disposição/mentalidade não amarga, não rebelde, trabalhada sobrenaturalmente pelo Espírito Santo em nós; que descansa na soberania e providência de Deus para connosco; que se submete de livre vontade. No entanto, vez após vez há o aviso de que o cristão deve ter um sentido apropriado de aflição e que deve colocar perante Deus as suas provações e aflições (I Pd.5:7; Sl. 10:1). O Cristão não é um estóico, a Bíblia dá-nos exemplos suficientes de orações a pedir libertação das provações para que o possamos e devamos fazer. 
Duas ideias importantes, o contentamento cristão é encontrar prazer no plano sábio de Deus para a minha vida e é importante compreender a união entre contentamento e providência. Ou seja Deus reina sobre todas as ocorrências de forma a salvar e santificar almas, isso faz com que eu procure encontrar, ou pelos menos perceber que existe, um propósito sábio e amoroso em tudo o que me acontece. Contentamento é compreender que Deus é soberano, que nenhum dos Seus planos é frustrado, que todas as coisas contribuem para o bem daqueles que O amam, se Deus não joga dados com o universo, então Ele está no controlo da coisa e esse controlo tem em vista um povo resgatado e a Sua glória.

7 aspectos da mentalidade satisfeita
1) A satisfação do cristão nas piores circunstâncias anda de mãos dadas com uma necessária insatisfação com o mundo;
2) A aritmética divina consiste em tornar-nos satisfeitos em Cristo subtraindo dos nossos desejos (I Tim. 6:10, Sl. 37:4);
3)   Reconhecer o castigo justo que o nosso pecado merece;
4)  O contentamento em toda e qualquer circunstância é aprendido na escola do sofrimento. II Cor. 11:23-28;
5)  Agir no aqui e agora, se Deus me colocou num determinado tempo e espaço é neles que devo agir (Mt. 5:14-16; Ef. 2:10);
6)   Somos criaturas divididas: novas criaturas (II Cor. 5:17), mas o pecado ainda mora em nós (Rom. 7:17, 21-24; Gal. 5:17), isso faz com que a mortificação do pecado seja uma necessidade;
7)   Viver a vida que é um sopro esperando a eternidade com Cristo.

Depois de Paulo, Davis foca-se em Cristo como nosso exemplo de contentamento. Jesus ensina-nos contentamento pelo Seu exemplo (Fil. 2:6-7; II Cor. 5:21; Is. 53:5); pela forma como depende de Deus, como cumpriu o plano de Deus e tudo faz para a glória do Pai; pela Sua expiação; pela Sua ressurreição.

Se Cristo ministra contentamento pela Sua morte quanto mais pela Sua ressurreição? Se Jesus morto na cruz é um meio interminável de paz e alegria em quaisquer circunstâncias, quanto mais poder tem um Cristo vivo no céu para ministrar contentamento à Sua igreja em guerra?

Na parte três, é abordado o valor do contentamento.
O contentamento permite uma adoração mais excelente (Is. 43:6-7; Ef. 1:5-6).
  "In active obedience, we worship God by doing what pleases God, but by passive obedience we worship God by being pleased with what God does." Jeremiah Burroughs 
O contentamento redunda também numa compreensão mais profunda da vida cristã e de quem Deus é, a exaltação da total maturidade cristã vem após uma vida de humilhação quieta debaixo da sábia e paternal mão de Deus. Burroughs escolhe explicitar o carácter paternal de Deus em vez de o real, para que o seu leitor perceba que o Soberano do Universo estabeleceu uma relação filial com ele. 
O contentamento faz-nos mais difíceis de ser tentados – descontentamento é um estado de mente instável, incansável, nervoso. Pessoas satisfeitas estão debaixo da mão de Deus, satisfeitas com as bençãos simples que Deus lhes tem dado. I Tim. 6:8

Nesta terceira parte também há lugar para meditar acerca da murmuração e do queixume, Burroughs escreveu que “há maior mal no hábito da murmuração do que aquele que percebemos haver.” p.109
A queixa é o contrário da adoração e louvor (I Pd. 2:9 e Tiago 3:10), queixa essa que revela a corrupção das nossas almas.
Burroughs continua, “As contentment reveals much grace in the soul, strong grace, beautiful grace, so murmuring reveals much corruption, strong corruption, vile corruptions in your heart.” p.111
Davis conclui que para a alma é pior a murmuração do que qualquer aflição, não há algo como uma pequena murmuração, o seu resultado já é mau o suficiente. Murmuração é rebeldia, é algo contrário à piedade. 
     Deste modo, a murmuração é definida como sendo oposta à obra da conversão operada pelo Espírito Santo. Deste modo, se a conversão revela a grandeza do meu pecado, bem como a grandeza de Cristo; se recusa os prazeres deste mundo por Cristo e mostra a necessidade de me entregar totalmente a Cristo;  o murmúrio esquece a grandeza dos meus pecados; o quão majestoso e glorioso Cristo é, especialmente enquanto Salvador; o murmúrio esquece que nos entregamos totalmente a Cristo como nossa fonte de alegria; que nos submetemos a Ele como Rei.
      Como já referi, Davis coloca muitas vezes a questão como uma questão de testemunho, aqui não foge à regra.
God has put us on display in front of everyone we know, but specially our spouse and our children. We can make life bitter for the person we embraced on our wedding day and strongly tempt that loving soul to discontentment as well. Not only that, but if you have children, think of them. They have been watching your example for years, quietly drinking in how to react to "any and every circumstance". When you complain, you are training them to follow your bad example. p.119

Se formos amargos e queixosos, por que é que alguém quereria ser como nós, pediria ou perguntaria a razão da esperança que há em nós? Mais fundo, que exemplo de satisfação tenho sido em casa, com os que me conhecem melhor?
Esta terceira parte termina com a análise do contentamento quer no sofrimento, quer na prosperidade.

A quarta parte do livro é sobre guardar o contentamento.
Ao concluir o livro, o autor repete uma última vez a ideia de que estar satisfeito não é o mesmo que ser complacente e que as disciplinas espirituais podem ser importantes na tarefa de ficar e continuar a ser satisfeito.
Neste caso, é importante o papel diário das disciplinas espirituais, a Palavra de Deus renova as nossas mentes diariamente e impede ou dificulta o descontentamento; devemos evitar ou odiar a murmuração, pedir para que Deus nos sonde, pedir contentamento em oração, prepararmo-nos para sermos sal e luz, perceber que é uma luta constante, viver coram Deo, em oração, agradecendo em todas as circunstâncias, mortificando o pecado, guardando a boca, exercitando a fé, decorando e meditando em versículos bíblicos.

Por outro lado, conhecer e estudar acerca de heróis da fé na história da igreja, orar e conhecer sobre a igreja perseguida e envolver-me com missões, envolver-me com ministérios que me “estiquem”, procurar servir onde não me agradeçam/passe despercebido, visitar os idosos, doentes e à beira da morte mudará também a forma como penso, como me vejo e ajudar-me-á a compreender a providência de Deus na minha vida, mas especialmente, na vida de outros. Quando perceber que Cristo morreu não somente por mim, mas por muitos mais, quando perceber o que tem feito na história e no mundo compreenderei melhor o Seu poder, a Sua acção, a Sua soberania e providência.

Finalmente, uma questão prática e que tem a ver com a pregação que ouvi ontem.
Viver em comunidade implica também prestar contas aos outros e pedir contas a outros, um confronto santo, afiar pedra com pedra, duas perguntas que posso fazer aos que comigo estão numa comunidade local:  
1)      Vês padrões regulares de descontentamento na minha vida?
2)      Podes orar para que cresça no contentamento cristão em toda e qualquer circunstância?

E ter calma, porque o segredo do contentamento é perceber que se trata de uma corrida de longa distância, vai durar toda a vida.





quarta-feira, 10 de julho de 2019

É com alguma naturalidade que um leitor de comics lê histórias de personagens clássicas do medium (Homem-Aranha, Batman, Super-Homem e por aí adiante...) escritas e desenhadas por diversos autores, mais ou menos fieis ao espírito dos autores originais. Na banda-desenhada franco-belga existem algumas vacas sagradas, ou personagens que só foram tratadas pelos seus criadores, ou sagas que continuam até aos nossos dias mantendo-se, no entanto, fieis ao tratamento (narrativo e visual) dos seus criadores.

Li com interesse este Le Dernier Pharaon, bem como alguns dos comentários e críticas acerca do mesmo em alguns sites especializados. Consigo compreender a insatisfação de alguns fãs acérrimos da saga escrita e desenhada por E.P. Jacobs - não há linha clara, há muito Mortimer, pouco Blake, não há Olrik, a narrativa não segue os cânones Jacobsianos, aliás, podia ser um álbum das Cidades Obscuras de Schuiten. Consigo compreender as críticas, mas para a repetição do cânone já temos a série original e as contemporâneas. Manter a estrutura narrativa de Jacobs, independentemente desta se manter moderna ou não, não surpreendendo de alguma forma, isto é moldar um argumento à estrutura original, mantendo a "linha clara" tem sido concretizado por Yves Sente, Jean Dufaux, Van Hamme, Benoit, André Juillard, Sterne, De Spiegeleer, entre outros, com algumas nuances e críticas pontuais, principalmente a Van Hamme. 

O álbum é uma espécie de sequela espiritual a O Mistério da Grande Pirâmide, passando-se alguns anos depois deste. 
Dito isto, se é verdade que gosto muito dos álbuns originais e vou lendo as novas aventuras com maior ou menor satisfação, depende do álbum e da equipa criativa, não é menos verdade que gosto do que conheço de Schuiten e Le Dernier Pharaon acaba por ser a sua homenagem, com Thomas Gunzig e Jaco Van Dormael no argumento e Laurent Durieux nas cores, à obra de E. P. Jacobs. Não é Schuiten a contar uma história de Blake e Mortimer no formato e estilo do criador destes, mas Schuiten a contar à sua maneira uma história de Blake e Mortimer, acabando por ser um livro que não destoa de toda a sua obra. É Schuiten on fire, em boa forma.
Eu gostei e não achei sacrilégio nenhum!



Não nos arde o coração?

Não nos arde o coração?
Deus é a nossa salvação.
A Sua ira retirou-se e
Ficou a Sua consolação.
Tiremos água das fontes
Da salvação, cantai hinos,
Exaltai Cristo, anunciai-o!
Não nos arde o coração?
Consolo, salvação,
Minha rocha e meu refúgio,
Deus eterno, morto na cruz,
Não nos arde o coração?

baseado em Isaías 12
8 julho 2019

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

A um membro de igreja que lhe disse que o seu pastor morreria das muitas pregações que fazia, Spurgeon respondeu: "O que mata bons ministros é pregar a congregações sonolentas."

Now, my brethren, one sign of a true revival, and indeed an essential part of it is the increased activity of God’s labourers. Why, time was when our ministers, thought that preaching twice on Sunday was the hardest work to which a man could be exposed. Poor souls, they could not think of preaching on a week-day, or if there was once a lecture, they had bronchitis, were obliged to go to Jerusalem and lay by, for they would soon be dead if they were to work too hard. I never believed in the hard work of preaching yet. We find ourselves able to preach ten or twelve times a week, and find that we are the stronger for it,—that in fact, it is the healthiest and most blessed exercise in the world. But the cry used to be, that our ministers were hardly done by, they were to be pampered and laid by, done up in velvet, and only to be brought out to do a little work occasionally, and then to be pitied when that work was done. I do not hear anything of that talk now-a-days. I meet with my brethren in the ministry who are able to preach day after day, day after day, and are not half so fatigued as the were; and I saw a brother minister this week who has been having meetings in his church every day, and the people have been so earnest that they will keep him ver often from six o’clock in the evening to two in the morning. “Oh!” said one of the members, “our minister will kill himself.” “Not he,” said I, “that is the kind of work that will kill no man. It is preaching to a sleepy congregation that kills good ministers, but not preaching to earnest people.” So when I saw him, his eyes were sparkling, and I said to him, “Brother, you do not look like a man who is being killed,” “Killed, my brother,” said he, “why I am living twice as much as I did before; I was never so happy, never so hearty, never so well.” Said he, “I sometimes lack my rest, and want my sleep, when my people keep me up so late, but it will never hurt me; indeed,” he said, “I should like to die of such a disease as that—the disease of being so greatly blessed.” There was a specimen before me of the ploughman who overtook the reaper,—of one who sowed seed, who was treading on the heels of the men who were gathering in the vintage. And the like activity we have lived to see in the Church of Christ. Did you ever know so much doing in the Christian world before? There are grey-headed men around me who have known the Church of Christ sixty years, and I think they can bear me witness that they never knew such life, such vigour and activity, as there is at present. Everybody seems to have a mission, and everybody is doing it. There may be a great many sluggards, but they do not come across my path now. I used to e always kicking at them, and always being kicked for doing so. But now there is nothing to kick at—every one is at work—Church of England, Independents, Methodists, and Baptists—there is not a single squadron that is behindhand; they have all their guns ready, and are standing, shoulder to shoulder, ready to make a tremendous charge against the common enemy. This leads me to hope, since I see the activity of God’s ploughmen and vine dressers, that there is a great revival coming,—that God will bless us, and that right early.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

A noite desce rapidamente. Os últimos raios de sol já não aqueciam, alumiavam timidamente o território invadido rapidamente pela penumbra. No quintal ainda nenhuma luz eléctrica, ao fundo via-se a raia, espanhola e alentejana, os pássaros cantavam alto em busca de refúgio em algumas azinheiras e oliveiras. O frio levou-o a entrar em casa, aquecida pela lareira, que servia não só para os aquecer, mas também para cozinhar um cozido de grão em panelas de barro.
A avó, viúva e só, quase todo o ano, dividia-se em tarefas caseiras, a mãe ajudava-a. Batem à porta, um tio de noventa anos entra com ar jovial e aquentado pelos copos de vinho tinto. Tem uma simpatia especial por este Tio, Domingos de seu nome, vê-o descer a rua, mora no monte ao lado da vacaria, vem direito que nem um fuso, gosta de vê-lo subir a rua, encostado ao muro para que o álcool o não derrube. Uma vida estranha esta, passada entre a casa, em que nunca entrou, e a taberna, onde há uns chocolates espanhóis.
Durante a tarde viu um pardal não se desviar a tempo de uma carrinha de caixa aberta, apanhou-o já morto e deu-o ao pai, “sem flobber, uh?”. Viu o ritual do pai, a que está habituado, depenar o bicho, cortar-lhe a cabeça, abri-lo ao meio. Juntou o pardal a outros pássaros que foi apanhando com a pressão de ar, uma tarde destas serão o petisco, fritos em alho e azeite.
Falam do acontecido com o pássaro, o tio olha-o sério e diz-lhe se foi a primeira vez que viu tal coisa, “um pássaro atropelado”. Ri-se nervosamente, diz que sim.
-Não é o mesmo, sabes, mas o meu bisavô dizia que quando um pássaro bate contra uma janela e morre, há alguém que morre.
Os adultos olham para ele, que sorri nervosamente.
-Ti Domingos, porquê? Há tanta gente a morrer e não vejo assim tantos pássaros a bater contra as janelas.
-Estas são mortes especiais, encomendadas.
Continua a história com um gesto, despeja o copo de vinho tinto, olhando-o nos olhos e terminando a despejar umas gotas de vinho em cima do pão.
Acordou com o carpir de algumas vizinhas, o Ti Domingos morreu durante a noite. Aquela conversa estranha fica-lhe na memória e liga-a à morte do tio. Um pardal a fazer de Valquíria, levando a alma do tio para outro lugar, no Alentejo não se deve chamar Valhalla.
Lembrou-se desta história hoje, entrou-lhe um pardal em casa, pela janela aberta. Assustado, tentou voltar à liberdade, matando-se contra as janelas. Já não pensava no Ti Domingos há mais de trinta anos.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Pregação do casamento do Isma e Inês - 14/05/2016

Efésios: 5:18-33
Deixem-me começar com uma teoria sobre a percepção do casamento, via cultura popular, nomeadamente, através da televisão, cinema e livros. A cultura popular tem uma visão cínica do casamento.
Os livros, as séries de tv e os filmes abordam os relacionamentos amorosos, o namoro e relacionamentos extra-conjugais com todas as ganas; mas o casamento fica fora da excitação.
Roemos as unhas até ao sabugo para saber se (ou quando) as personagens principais vão ficar juntas, mas raramente o casamento tem o mesmo tempo de antena, interesse ou excitação do que um namoro ou um caso extra-conjugal.
O Clark Kent já não está casado com a Lois Lane.
O Peter Parker já não está casado com a Mary Jane.
O fox Mulder já não está casado com a Danna Scully.
E por aí além…
É difícil escrever sobre casamento, porque o casamento é chato ou então um meio para fins pouco ortodoxos. Há algum casamento recomendável em Game of Thrones?
Ao absorvermos a cultura à nossa volta, absorvemos a visão do casamento veiculada por ela.

Olhemos para o texto lido, Efésios 5:18-33, para vermos a visão cristã acerca do casamento.
  1. 18 – “Enchei-vos do Espírito.”
  2. 21 – “sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo.”
Quando o Antigo Testamento fala de temor ao Senhor, está a dizer-nos que esse temor altera a minha relação com Deus. Temer, neste sentido, é ser tomado de espanto diante da grandeza e do amor de Deus. O temor de Deus “liberta-nos” para o serviço, mas Paulo vai palicar o temor a Deus e o serviço mútuo ao casamento!
Neste contexto, são duas expressões que querem dizer o mesmo, o que está cheio do Espírito Santo teme a Deus. São duas expressões que tiram o foco dos meus esforços para o colocar na acção de Deus na minha vida. (I Jo. 4:19)
É possível ser descrente e ser casado, mas não é possível divorciar a fé do casamento, aliás a fé enriquece, aprofunda o casamento!
Se o casamento é serviço, então é mais acção do que sentimentos!
Neste dia de alegria, felicidade, comida e bebida deixem-me dizer “O casamento não é fácil, concordam comigo?”
Conheço casamentos que duraram a lua de mel, há alguns que nem à lua de mel chegaram! A ideia é “ se estás mal, muda-te!”
Inês, Ismael, o casamento é sobre mudanças e o vosso vai assistir a muitas mudanças.
A visão protestante sempre viu o casamento como uma lugar para formar carácter na união de um homem e de uma mulher.
A interpretação clássica protestante acerca do casamento é a de que é um dom de Deus para a Humanidade. Tem o objectivo de povoar a terra, tem um objectivo de desenvolvimento social (um “local” onde educar crianças em harmonia e amor), é uma escola de aprendizagem, serve para controlar paixões, para negar desejos, para servir um ao outro e a outros.
No século XVIII, com o Iluminismo, a visão cultural do casamento muda porque a visão do homem muda, ao abandonar Deus o homem torna-se livre para fazer o que quer, como bem lhe apetecer, usualmente em função dos seus gostos, prazeres e vontade.
Assim temos duas visões do casamento:
  • Uma instituição que visa o bem comum (nós)
  • Uma visão que visa a satisfação do indivíduo (Eu)
Vocês são dois indivíduos, se ignorarem o nós, se cada um quiser satisfazer o seu ego vai haver problemas!
O Isma e a Inês reconhecem que são pecadores. Essa é a base de um casamento cristão. 2 pessoas imperfeitas, pecadoras que se unem para criar um espaço de consolo, amor e estabilidade debaixo da misericórdia de Deus! Quando nos casamos há mudanças e não há modo de antecipar todas essas mudanças.
Paulo refere-se ao casamento como uma mistério (v.32), porque Paulo está a dizer que só compreendemos totalmente o casamento, só cumpriremos bem o nosso papel no casamento, quando virmos o casamento como uma imagem do relacionamento entre Cristo e a Igreja. Um dos propósitos de Deus para o casamento é retratar a relação entre Cristo e o Seu povo resimido.
Cristo não se aproveitou da sua igualdade com o Pai (Fil. 2), mas tomou a forma de servo, morreu, mas Deus o ressucitou dos mortos.
O casamento só funciona quando se aproxima do modelo de amor abnegado de Deus em Cristo. Quando Deus inventou o casamento já pensava na obra redentora de Cristo!
Somos mais pecadores e imperfeitos do que imaginamos, mas também somos mais amados e aceites em Jesus do que possamos almejar.
O amor salvador de Jesus é caracterizado  por esta verdade radical – somos pecadores; mas também por esta outra, se Jesus é teu salvador, ele tem um compromisso radical e incondicional contigo.
“O único lugar além do céu onde se pode estar perfeitamente a salvo dos riscos e perturbações do amor é o inferno.” C.S. Lewis
Isma e Inês, vão existir perturbações no vosso casamento:
  • Confessem os vossos pecados uns aos outros e a Deus;
  • Dependam de Deus.
v.21 – “sujeitem-se uns aos outros no temor de Cristo”
De que forma?
  1. 22 – “Mulheres sejam submissas” (submissão)
  2. 25 – “Maridos, amai vossas mulheres como Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela.” (Amor Sacrificial)
A submissão faz-nos coceira aos nossos ouvidos ocidentais. O argumento é aprender a servir uns aos outros no poder do Espírito Santo. Paulo está a escrever a uma igreja, a dizer-lhe para ser cheia do Espírito Santo e depois aplica este argumento ao casamento. Paulo tem uma visão espiritual do casamento, se não estivermos cheios do Espírito Santo não serviremos bem o noso conjuge. Como é que sabemos que tememos a Cristo e estamos cheios do Espírito Santo? Mulher casada, se és submissão ao teu esposo. Homem casado, se a amas com amor sacrificial.
Paulo está a desafiar os conjuges a viver um para o outro e não para si mesmos! A fazê-lo no temor de Cristo. (Fil. 2:3)
Paulo coloca o conjuge num duplo papel: conjuge e irmão em Cristo.
O princípio bíblico, atestado por Paulo, no casamento é o da liderança/autoridade masculina, mas ao trazer esta noção de serviço e ao estabelecer que a mulher é uma irmã em Cristo, a ideia de autoridade é alterada. Não é uma autoridade fascista, cega. Para ser sincero, o Isma ficou com a fava – amor sacrificial, em último caso é chamado a dar a sua vida pela Inês!
I Cor. 13:4-5
O serviço sacrificial redunda em felicidade, esta é uma ideia estranha, para nós, veiculada pela Bíblia!
Quando procuramos servir o outro dentro do casamento em vez de procurar a minha própria alegria, vou encontrar a minha felicidade!!!
O casamento é uma aliança diante de Deus e com Deus. É um voto vertical, com Deus; e um voto horizontal, um com o outro.
A aliança é a combinação entre lei e amor. Tim Keller diz que o amor precisa de uma estrutura de obrigação e compromisso. O namoro é uma relação de consumo, há necessidade de promoção, temos a Inês em photoshop, o Isma em photoshop.
Muitos casamentos terminam porque não percebem que o casamento nos obriga a despir, não só fisicamente, mas também psicologicamente. Temos de ser nós mesmos, com as nossas falhas e pecados 24h, perante o outro. Vocês vão estar diante um do outro sem photoshop!
Os votos de casamento não são presentes, mas votos de amor futuro, a promessa que fazem hoje é um meio para a liberdade e felicidade. A estrição de liberdade no presente é para estarem ao lado de pessoas de confiam em vós. Escondemos o nosso pior dos outros, o casamento é o local para nos desvelarmos ao outro. Se o outro não me conhecer realmente, ele nunca me poderá amar verdadeiramente. Muitas das vezes, a noção de paixão que sentimos é uma erupção de gratificação do ego, mas não ainda a satisfação profunda de ser conhecido e amado.
Daqui a uns anos, quando a Inês conhecer o pior do Ismael, os seus pontos fracos e falhas, os seus pecados e ainda assim se comprometer com ele, isso será uma experiência mais completa e suprema. E vice-versa.
Com o tempo, vão descobrir realmente como é o outro e amá-lo por ele ser quem é, não só pelo prazer publicitário e do ego que proporciona.
Isma, atenta nestes dois versículos:
  1. 25 – “Amai vossa mulher”
v.28 – “devem amar a vossa esposa”
Estes dois versos explicitam uma obrigação, porque há alturas em que não vais sentir grande amor pela Inês, dias em que te vais esquecer do dia de hoje e dos votos de casamento.
Os sentimentos mudam de intensidade, se seguirmos a nossa cultura o normal é o fim do casamento, o abandono!
Age, ama, haverá alturas em que não te sentirás particularmente carinhoso, queres ir jogar à bola ou ver bola, não vais querer ajudar na lida da casa, falar com a Inês ou perdoar a Inês. A prática do amor fará com que os sentimentos se tornem mais constantes.
Terminando, qual é a missão última do casamento?
Se são irmãos em Cristo, ajudar mutuamente a alcançar a identidade gloriosa da nova criação.
O casamento deve ser um processo de refinamento espiritual mútuo. O casamento não é o culminar da procura pela pessoa ideal, é um processo de santificação a dois. Se o conjuge for somente o parceiro sexual ou financeiro, facilmentre descobriremos que precisamos de actividade fora do casamento para nos sentirmos satisfeitos. Se o conjuge for o nosso melhor amigo, o casamento será o relacionamento mais importante da vossa vida.
Muitos casamento entre cristãos começam com a ideia de jornada em direcção de Deus como algo acessório. A fé é encarada somente como factor de compatibilidade.
Há uma cena da cultura popular, acerca do casamento, que me toca especialmente, é no filme Duelo Imortal (Highlander). Nesse filme, um imortal casa com uma escocesa mortal.
O plano é nas terras altas escocesas onde vivem e constroem a sua casa. Vemos o dia a dia feliz deles. As estações do ano passam, e o que transparece é a felicidade do casal.
Vamos Connor a afastar-se de cavalo, e mais tarde a voltar e chamar por ela…ela responde, e vem do vale, lentamente, Connor continua com o mesmo ar de trintão saudável, ela é uma anciã fraquinha.
No seu leito de morte, ela, velhinha e fraca, ele a vender saúde como nunca, ela pergunta-lhe:
– Por que é que ficaste?
– Porque te amo como desde o dia em que te conheci.
– Não quero morrer. Quero ficar contigo para sempre.
– Também quero isso.
Eles não ficaram juntos para sempre, ela morre e o filme continua. Mas o casamento serve para se ajudarem mutuamente a conhecerem-se melhor, a amar um ao outro, mas também a amar e servir Deus, a serem seus imitadores a caminho da Jerusalém Espiritual. (Cant. 8:6-7)