segunda-feira, 20 de abril de 2020

Park Bench/Um Pedaço de Madeira e Aço de Chabouté

Em 2002, a Marvel decidiu apostar num "evento", ´Nuff Said era um desafio às equipas criativas dos títulos mensais, criar uma história sem texto, contar a história somente através das imagens. Lembro-me que fiquei desiludido, mais pela rapidez com que li a minha dose mensal de títulos que comprava do que por outra coisa. Sei que tenho para ali pelo menos quatro títulos abrangidos por esta iniciativa, New X-Men de Grant Morrison, Spider-Man de Straczynski, Daredevil de Bendis e Exiles de Judd Winick. De memória, só me lembro vagamente dos números de New X-Men e de Exiles.
Nos últimos dois anos, temos cá em casa visto vários clássicos do cinema, e temos descoberto alguns clássicos mudos, Aurora de Murnau e Metropolis de Fritz Lang foram os dois que nos marcaram mais até agora, mas poderia alargar o número de títulos de cinema mudo vistos para mais uma dúzia. Chaplin tem um filme sonoro em que descarta o diálogo, por considerar que o som seria coisa de pouca dura. Carreiras terminaram e começaram pelo advento do sonoro no cinema, alguns dos grandes actores do mudo tinham vozes pouco apelativas para o sonoro (Singing in the Rain mostra bem esta mudança de paradigma). A banda desenhada, seja em títulos mensais, em tiras de jornal, cartoons ou graphic novels, tem demonstrado que pode tirar partido da junção entre texto e imagem, mas são muito diversos os exemplos de autores que veiculam a mensagem pretendida ou que conseguem contar a história que desejam usando somente o desenho. Vem-me à mente Quino e os seus cartoons geniais, que tanto usei em aulas. Ando a vaguear entre cinema e banda desenhada, entre cinema mudo e banda desenhada sem texto para falar de Park Bench de Chabouté, uma banda desenhada de 328 páginas que dispensa o texto.


Comecemos pelo título, li Park Bench, na edição inglesa editada pela Faber & Faber. O título original é bem mais expressivo e poético, Un peu de bois et d´acier; a editora brasileira Pipoca e Nanquim traduziu-o sem dificuldades, Um Pedaço de Madeira e Aço. O título poético original assenta que nem uma luva na história de Chabouté, uma história em que a personagem principal é um objecto, ou o espaço adjcente a este, um banco de jardim. Chabouté conta diversas histórias, através de diversas personagens, o tipo que corre no parque e que usa o banco para os seus exercícios diários de alongamentos, o casal de idosos que partilha um bolo, o sem abrigo que bebe uma garrafa ou dorme no banco e o polícia que o multa e escorraça dali, o cão que micta num dos pés do banco, o trabalhador da câmara responsável pela conservação do banco, a senhora que se senta no banco a ler um livro, entre outros. O banco do jardim, um dos objetos mais simples e recursivo do nosso dia a dia dá-nos a passagem do tempo, temporal e meteorológico, e com ela o quotidiano banal de diversas personagens. A preto e branco, em planos diversos, mais ou menos aproximados do banco, Chabouté usa o desenho e as sombras de forma detalhada e expressiva para contar pequenos quadros de pessoas e animais. A expressão das personagens descarta a necessidade de texto, dei por mim a rir ou simplesmente a sorrir com o humor, a ternura e a exasperação das personagens.




Park Bench é um título objectivo, mas como já referi, que descarta a poesia do título original, poesia esta que casa bem com o teor da narrativa descrita graficamente. O livro trata da interacção com um determinado espaço, da vida quotidiana, dos pequenos detalhes que a observação das pessoas permite, o livro, como um bom filme silencioso, ganha e transborda o silêncio nele existente, a palavra como forma de comunicação é aqui supérflua, porque a imagem, o traço, o preto e branco e sombras usam o medium da melhor forma possível. "Uma imagem vale por mil palavras" torna-se realidade nesta banda desenhada. O silêncio das imagens tanto pode ser terno, como ensurdecedor, como a realidade transposta, do casal de idosos que partilha os bolos ou doces ao abrir de uma carta que confirma o tumor.





















Park Bench faz o difícil, fazer de um local pelo qual passamos centenas ou milhares de vezes sem atentarmos para o que está à nossa volta a personagem principal, brincando no fim com a alteração de paradigma, o banco é trocado por um outro mais moderno, mas menos ergonómico, menos familiar, menos prático. As pequenas histórias contadas são-nos familiares, expectáveis e redundantes no seu término, o final é recursivo e xaroposo, mas cai como a cereja em cima do bolo.

Uma das grandes leituras deste ano. 



















quinta-feira, 16 de abril de 2020

Lost Dogs de Jeff Lemire


Vou tentar escrever opiniões curtas sobre algumas banda desenhadas, se conseguir escrever uma por semana fico satisfeito.
Vou, entre outras coisas, escrever muito sobre Jeff Lemire, nenhum outro autor me cativou nos últimos anos quanto Lemire. Acho que entrei no universo criativo de Lemire com Animal Man, na altura gostei, mas não fixei o nome do canadiano, aliás, já li muita da produção de super-heróis de Lemire e não sou adepto fervoroso, Animal Man e Green Arrow destacam-se, ainda que não tenha lido nada do que escreveu para a Valiant, mas foi ao ler Black Hammer que o interesse em Lemire cresceu, haveremos de ter tempo para falar de Black Hammer, mas o que mais me surpreendeu e agarrou nesse universo foi a homenagem, conhecimento e amor de Lemire pelos comics americanos, das diferentes eras, editoras e autores, a forma como isso é destilado num universo de forma coesa, mas caleidoscopicamente, surpreendeu-me, ainda que o início tenha exigido de mim algum esforço. Parafraseando Pessoa, de início estranhei (demorei a perceber a homenagem, teimosamente encarei a obra inicialmente como pastiche), mas depois entranhei.

Lost Dogs é a primeira obra (auto-)publicada de Jeff Lemire e percebe-se isso. As primeiras doze páginas foram fruto de um desafio criado por Scott McCloud, desenhar 24 páginas em 24 horas, o que ficar na página não sai, é um desafio para o criador e talvez isso explique também o aspecto mais cru e “atabalhoado” desta primeira obra de Lemire.
O mais interessante em Lost Dog é descobrir a génese e criatividade do autor canadiano, já há alguns dos temas mais caros a Lemire, a família e os seus relacionamentos como base narrativa, a redenção das personagens, a brutalidade e violência como ambiente em que as personagens se movimentam. Sendo uma primeira obra, datada de 2005, consegue-se perceber claramente a evolução narrativa e artística de Lemire. Um dos pontos fortes de Lemire, e uma das razões porque gosto tanto dele, é a narrativa visual, a passagem de quadrado para quadrado, a forma como veicula a emoção e como a história é contada, aqui essa narrativa visual ainda é imberbe, mas já dá para perceber a competência visual do canadiano.


Sailor é um “gigante” de camisola branca e vermelha, um homem feio e rijo, que encontra na sua família o seu abrigo. Casado, com uma filha e um cão, vive da terra, no campo, onde é feliz. A história inicia-se com esse retrato idílico e avança com a decisão de levar a família a passear à cidade. O tipo de maravilhamento presente em Sunrise (Aurora), a obra prima de Murnau, está presente aqui; mas se em Sunrise Murnau conta a história de um homem que leva a mulher a passear à cidade antes de matá-la para consumar uma traição, reencontrando o amor pela esposa, Lost Dogs faz o caminho inverso, a cidade que reacende o amor em Sunrise é em Lost Dogs a cidade que termina com a família de Sailor. A observação dos navios leva a um ataque nocturno, a filha é morta, a esposa é violada e Sailor é brutalmente atacado e lançado ao mar, rumo a um abismo, maravilhosamente ilustrado na capa.
Resgatado e vendido a um velho, que o atira para um destino de lutas clandestinas, com a promessa de revelar-lhe a localização da esposa, Lost Dogs aposta numa narrativa negra (o preto e branco e o vermelho são as cores usadas, em traço grosso, no estilo - inicial, é verdade - já inconfundível de Lemire) em que a (des)humanidade das personagens, a sua imperfeição, a sua luta por redenção (aqui não tão objectiva como em outros títulos) avançam a trama para o seu desenlace.


Lost Dogs não é a melhor obra de Lemire, longe disso, mas como primeira obra é extremamente interessante, o uso das três cores lembra o uso mais refinado do preto, branco e azul em The Nobody, a arte é hoje mais fluida, a estrutura das páginas mais natural e “cinematográfica”. Mas a “voz” e a visão de Lemire já aqui estão.  Faltará a poesia Lemiriana, o cuidado e atenção ao pormenor, o final mais redentor, como por exemplo em Roughneck, mas Lost Dogs é um excelente ponto inicial (desculpem a redundância) para descobrir Lemire.

terça-feira, 24 de março de 2020

The Big Country

The Big Country é um western de William Wyler, um daqueles realizadores subvalorizados por ter realizado todos os géneros e mais alguns, ser um excelente "tarefeiro", mas sem se dedicar a uma filmografia muito pessoal, com exceção talvez do que filmou no final da década de 1930 e durante toda a década de 1940 (dele são Ben-Hur, Roman Holiday, The Best Years of our Lives, The Letter, Jezebel, Mrs. Miniver, Funny Lady). A verdade é que os filmes, pelo menos os que vi, têm sempre um cunho pessoal, o último plano de Roman Holiday é delicioso, ou então sou eu que estou a tentar ver mais do que lá está, e este The Big Country é uma boa prova disso mesmo, como o plano da luta entre James McKay (Gregory Peck) e Steve Leech (Charlton Heston), para dar somente um exemplo.

Não sei se The Big Country é um western ou um anti-western, estão lá todos os temas recorrentes do género, a imensidão do território, a luta por território, os conflitos familiares e humanos numa comunidade, bem como a apatia/habituação dessa comunidade para com esses conflitos, o aparecimento de um estranho numa comunidade, enfim, faltam os índios, mas nem todos os westerns vivem do conflito entre índios e caras pálidas. Mas o filme não dá as cartas da mesma forma que um western dá, talvez porque a personagem de Peck nunca tente ser ou aja como um cowboy, é um marinheiro, com um determinado código e age de acordo com isso. 

McKay (Peck) é, então, não só o estranho porque chega a um sítio onde todos se conhecem, mas também pela forma de lidar com os problema que foge à regra, fugindo aos cânones do género. Talvez por isso a esposa, que não é fã de cowboiadas, tenha gostado tanto deste filme, a verdade é que se as temáticas estão cá e o clímax não foge ao usual, o filme balança entre o género e a fuga a este. 

A história é simples, talvez demasiado simples para 2h30 de filme, mas a verdade é que o filme não cansa e não perde fôlego. 
Chuck Connors, Gregory Peck e Carol Baker
O oficial James McKay (Peck) chega ao oeste para se juntar à noiva Patricia (Carol Baker), filha de Henry Terril (Charles Bickford), conhecido por todos como Major. A chegada é marcada pelo encontro com o grupo de Buck Hannassey (Chuck Connors), filho do inimigo do Major, Rufus Hannassey (Burl Ives). Mckay surpreende nesse momento, e em vários posteriores, a noiva pela forma como age ou, como na visão dela, não age. A presença deste corpo estranho e das suas idiossincrasias vai levar a mais alguns achaques com Steve Leech (Charlton Heston), o braço direito de Terril, apaixonado por Patricia. Os conflitos então vão-se multiplicando, entre os Terrils e os Hanasseys,  com a professora Julie Maragon (Jean Simmons) no meio, dona do terreno cobiçado pelas duas famílias, entre McKay e todos os outros, nomeadamente, a sua noiva e Leech. O final é formulaico, os relacionamentos (as suas indecisões e conclusões) estão à vista quase desde o primeiro momento, mas a dinâmica narrativa e o interesse pelo filme não diminuem por causa disso. Aliás, o o interessante na fórmula está não na forma como é utilizada, mas na forma como resulta e aqui vai resultando porque as personagens são cinzentas, passamos da certeza que um dos lados é o bom, para a certeza que nenhum é perfeito, há uma humanidade espelhada quase antagonicamente entre os homens da família e os seus capatazes, as personagens vão-se dando a conhecer, nas suas qualidades e defeitos, quase como se só pelo olhar de um estranho isso fosse possível.

Wyler usa o título The Big Country (na versão portuguesa Da Terra Nascem os Homens) como mote para diversos planos que acentuam a vastidão do território, quase tão vasto como a cobiça e desejo humanos que levam aos conflitos narrados. Os planos da visita de McKay a Maragon, da já citada luta, os planos iniciais e finais mostram a vastidão do território. Se o território é tão vasto porque é que causa tantas lutas e amores? Não haverá terra para todos? O elenco é sólido, Gregory Peck e Jean Simmons são eles mesmos, ganham e prendem-nos ao ecrã, Heston faz um raro papel secundário (acho-o sempre ligeiramente canastrão), mas é Burl Ives que se destaca, aliás o carisma e competência de Ives demonstra ainda mais a infeliz escolha de Bickford para antagonista deste, estão nos antípodas um do outro, um é grande, quase que não precisa de abrir a boca para fazer sentir a sua presença, mas quando a abre... é assombroso. Bickford não tem grande presença física, talvez nos convença antes de Ives entrar em casa deste durante a festa, mas a partir daí faz confusão a escolha.

Burl Ives
Resumindo, talvez não seja um daqueles westerns que nos vem à cabeça, mas The Big Country é um excelente filme, para amantes do género e não só.




Peck e Simmons


Peck e Simmons


Dark Clouds, Deep Mercy (III)

A terceira e última parte do livro, Viver com Lamento, tenta fazer algumas aplicações práticas, tanto pessoais (no que à leitura da Bíblia, ao pranto, ao aconselhamento, à confissão de pecados diz respeito) como comunitárias (em funerais, em orações congregacionais, na pregação e ensino, em pequenos grupos, nas questões raciais e na criação de cânticos espirituais).

"I now believe lamenting together is the church´s calling." p.176

Tendo em conta tudo o que já foi dito, Vroegop resume o lamento como uma linguagem para perda, uma solução para o silêncio, uma categoria para as queixas, uma estrutura centrada em Deus para "canalizar" os nossos sentimentos, um processo para a nossa dor e um caminho para a adoração.
Numa ideia, a prática do lamento prepara-nos para dificuldades futuras, já que nos leva por um caminho de restauração emocional e de crescimento espiritual. Como? Dando-nos uma linguagem mais profunda, uma empatia mais verdadeira e profunda com quem sofre, vivendo de forma prática a esperança escatológica que temos e a dependência no Deus soberano, poderoso e salvador em que acreditamos. O nosso louvor e adoração está cheio de vitória, mas afasta o lamento e as lutas por que passamos para segundo ou terceiro plano; sem querermos (e por vezes, conscientemente, também) ignoramos a linguagem presente nos salmos, e também a teologia associada, perdendo uma forma de aliviar e lutar contra as nossas provações e guerras espirituais. Somos mais do que vencedores em Cristo, claro, mas continuamos a passar por dificuldades, dor e espanto, quantas vezes tentamos (eu tento) passar estoicamente por essas situações sem perceber que estou a evitar exercitar e aprofundar a minha fé? 

"Lament helps us embrace two truths at the same time: hard is hard; hard is not bad" p.189

A frase batida do livro, que deixei para o fim, "chorar é humano, lamentar é cristão". Confiar em Deus não está em oposição à tristeza profunda, os cristãos lamentam expectativamente, acreditam que a morte e ressurreição de Jesus inaugurou a derrota da morte e do pecado.

"You see, Christianity needs competent lamenters. The gospel empowers the followers of Jesus to enter the dark moments of people´s lives. Those who know the story of hope and who believe in God´s goodness can be conduits of his grace. Lament allows us to hear the brokeness around us, weep with those who weep, and walk with them on the long road of sorrow." p.194

(Estes pequenos textos valem o que valem, e não dispensam a leitura do livro. A leitura deste em Dezembro foi um autêntico bálsamo e fonte de benção Lendo inglês, aceitem a sugestão).



segunda-feira, 23 de março de 2020

Dark Clouds, Deep Mercy (II)

A segunda parte do livro intitula-se Aprender das Lamentações e o seu foco é o livro de Lamentações de Jeremias.

"God whispers to us in our pleasures, speaks in our conscience, but shouts in our pains: it is His megaphone to rouse a deaf world". 
C. S. Lewis

O lamento não é somente uma expressão de tristeza mas também um memorial, Lamentações mostra-nos uma tensão entre a presença da dor e a soberania de Deus.

Vroegop dá-nos 3 lições dos primeiros 2 capítulos de Lamentações:

1) o pecado é o problema real

O lamento interpreta todo o sofrimento través das lentes da compreensão bíblica do pecado, a realidade do pecado deve interpretar as nossas dores e sofrimentos.

2) o meu pecado e sofrimento não são os únicos problemas

"Our natural bias is to individualize suffering (...) I need to be reminded that my pain is not the only pain." p. 102

"More than just providing confort and help in our times of sorrow, the grace of lament helps tune our hearts to the pain of others and to the foundational truths about God and the World. We can lament on behalf of our culture, identifying with the brokeness around us. When leaders fall, scandals shock or unrighteousness reigns, we have a prayer language to embrace the disappointment of casting judgement." p.102

3) O lamento acorda a alma, aponta-nos para a perspectiva divina

O lamento é, em certo sentido, uma disciplina espiritual que pode acordar as nossas almas da apatia espiritual. 

O capítulo 3 de Lamentações tem como contexto a destruição de Jerusalém e convida-nos à confiança na soberania de Deus ainda assim. Em tempos de Covid-19, é importante não ignorarmos esta verdade, Deus é soberano, tanto na riqueza, como na pobreza, tanto na saúde como na pandemia.
Vroegop anima-nos, o lamento bíblico é transformativo porque não só dá voz à dor que sentimos, mas também porque ancora o nosso coração às verdades em que acreditamos. 

O lamento arrisca a esperança quando a vida é dura.

"Faith is a footbridge that you don´t know will hold you up over the chasm until you´re forced to walk out onto it" 
Nicholas Wolterstorff p.110

"Lamentations shows us that hope does not come from a change of circumstances. Rather, it comes from what you know to be true despite the situation in front of you. In other words, you live through suffering by what you believe, not by what you see or feel." p.110

"Lament can help you by reharsing the truth of the Bible to preach your heart, to interpret pain through the lens of God´s character and his ultimate mercy." p.111

O lamento é a oportunidade de expressarmos a tristeza e admiração que sentimos pelas dificuldades e situações tenebrosas porque passamos, ao mesmo tempo que ensaiamos as verdades em que acreditamos. É viver pela fé, mas também a fé que professamos!

De uma forma prática, Vroegop dá-nos 4 verdades que Jeremias nutriu no seu coração:

1) As misericórdias de Deus nunca acabam (3:22-24)

Mesmo no pior dos cenários, Deus é suficiente, mesmo no choro e miséria humana Deus não deixa de ser Deus!

2) Esperar não é em vão (3:25-27) 

Esperar no Senhor, biblicamente, é colocar a minha esperança Nele. Esperar é das coisas mais difíceis que podemos fazer porque na realidade não estamos a fazer nada, estamos à espera que Deus faça! Para quem, como eu, gosta de estar no controlo da sua vida, da sua casa, das suas finanças, esperar coloca-me num lugar desconfortável, porque afirma de forma prática que eu não sou o senhor da minha vida!

3) A palavra final ainda não foi proferida (3:31-32)

O sofrimento não é o fim, choramos por causa da dor e sofrimento, mas devemos olhar com expectativa para o que Deus ainda trará, esse também é um dos propósitos do sofrimento, olhar para o futuro redentor prometido por Deus.

4) Deus é sempre bom

Há um propósito amoroso, redentor, gracioso e misericordioso por trás de cada lágrima.
"Todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam a Deus".

O capítulo quatro da Lamentações ajuda-nos a ver quais são os nossos ídolos. O lamento funciona como um memorial à futilidade de confiar em algo ou alguém além do nosso Deus, trocando por miúdos, as dificuldades ajudam a revelar os nossos ídolos. 

"Sorrow comes from losing one good thing among others... Despair, however, is inconsolable, because it comes from losing an ultimate thing. When you lose the ultimate source of your meaning or hope, there are no alternative sources to turn to. It breaks your spirit."
Tim Keller p. 124

Em que é que eu coloco a minha segurança e confiança? A dor pode, para além de ser uma plataforma para a adoração, ser também uma forma de me levar ao crescimento espiritual e ao arrependimento. Vroegop faz uma lista de coisas em que tendemos a colocar a nossa confiança, da segurança financeira a pessoas, do desejo de conforto cultural (ignorando a miséria e pobreza à nossa volta) à presunção do favor divino (somos o povo de Deus, Deus estará sempre connosco, essa foi a desculpa do povo para ficar cego ao seu próprio pecado e à graça divina) passando pela tentação de fazermos dos nossos líderes espirituais ídolos. 
Tenho desenterrado os ídolos do meu coração? Tenho-me agarrado a eles? Que este seja um momento de refrigério espiritual e de identificação dos meus ídolos. 

Lamentações termina apontando para Deus, sem nos dar o final da história. Não sei se contigo, mas esse facto mexe comigo. O ponto para o autor é o de o lamento ser uma linguagem de reorientação espiritual, a questão é que o lamento não é um passo de mágica - lamenta e tudo será resolvido, não! O lamento não resolve todas as situações e problemas da minha vida, a resposta pode tardar, pode nem ser aquela que eu desejo, mas o lamento é a linguagem de oração para esta realidade.

A oração por restauração e renovação no final de Lamentações aponta para algo que só Deus pode fazer, mas também para a nossa maior necessidade, estarmos bem com Deus, ou seja, o lamento é a linguagem de quem conhece a história completa, o Evangelho.

(continua)
























domingo, 22 de março de 2020

Dark Clouds, Deep Mercy (I)

Os adeptos da teologia da prosperidade olham para a dor como um resultado da falta de fé, dizem eles que Deus não quer que soframos, se determinada pessoa está doente ela pode ser curada, se tal não acontece o problema está nela e não em Deus ou na pessoa que a tenta curar. De uma só vez ignoram todos os textos acerca de Moisés, David e Jesus, para dar somente três exemplos. A fé para estas pessoas é a moeda de transacção para a felicidade e riqueza, a santificação (sem a qual ninguém pode ver Deus) é trocada pela prosperidade material e monetária. Tive em tempos uma conversa com um destes líderes religiosos, que desconhecia a Bíblia de forma atroz, que ignorava na prática o que significa exegese e que usava cada versículo como uma plataforma para uma oratória de cinco tostões ("palavras de poder" no seu entender) que contradizia vez após vez a mensagem bíblica - o importante não era a salvação, mas a sua satisfação material.

Ninguém no seu perfeito juízo quer sofrer, mas qual é o papel da dor e do sofrimento nas páginas das Escrituras? Mark Vroegop escreveu um excelente livro, Dark Clouds, Deep Mercy - Discovering the Grace of Lament, sobre isso e especificamente sobre o papel do lamento e das lamentações na vida dos crentes.

De uma forma geral, Vroegop descreve o lamento como o acto de levar as nossas tristezas e dores a Deus enquanto processamos essas mesmas dores, é sofrer coram Deo, é lamentar, chorar, admirar-se com o que aconteceu/acontece perante Deus, colocando esses assuntos aos Seus pés. Neste sentido, lamentar é unicamente Cristão.

"The practice of lament - the kind that is biblical, honest, and redemptive - is not natural for us, because every lament is a prayer. A statement of faith. Lament is the honest cry of a hurting heart wrestling with the paradox of pain and the promise of God´s goodness." p.26

O livro de Vroegop foi extremamente importante para mim, em situações que abanaram a minha fé e equilíbrio espiritual, leiam os textos acerca dos elevadores, neste mesmo blog e terão uma ideia. Há coisas que sabemos teoricamente e pensamos que nenhuma situação nos abalará, falava com um amigo acerca de uma verdade simples, aquilo que o pode derrubar não é o que me derrubará obrigatoriamente, quantas vezes olho para as circunstâncias de alguns irmãos e não percebo o que os atormenta tanto, porque determinadas áreas podem ser aquelas em que sou mais forte, e quantas vezes o contrário pode acontecer? Também aqui preciso de maior empatia para chorar com os que choram e rir com os que riem.

O lamento é então a oração na dor e em dor que leva à confiança em Deus, o lamento coloca questões como "onde estás, Deus?" e "se me amas, se estás aqui, porque deixas isto acontecer?"
O lamento é o percurso da dor à adoração e louvor.
A primeira parte do livro usa Salmos de Lamento (1/3 do saltério é composto por Salmos de Lamento) e intitula-se Aprender a Lamentar, de forma prática o autor divide o lamento em quatro acções:

1) dirige-te a Deus (Salmo 77)

Para um cristão a existência de Deus parece ser a verdade mais básica em que acredita, mas quantas vezes é que na dor e provações agimos como ateus? É nestas circunstâncias adversas que orar, falar com Deus parece ser um exercício impossível. Clamar a Deus no sofrimento é reconhecer a sua existência, ficar em silêncio perante Deus quando se sofre, i.e., ignorar a sua presença e poder, é a maior prova de descrença. O desespero vive da ideia que Deus não se preocupa, não ouve. 
O lamento direciona as nossas emoções, a nossa dor, as nossas questões e dúvidas a Deus, em vez de nos fecharmos em nós e nos mortificarmos em dor e pecado.

É preciso fé para vocalizar essa dor, esse espanto, as dúvidas pelas quais passamos.

"The biblical language of lament is able to redirect weeping people to what is true despite the valley they are walking through." p.36

O primeiro passo então é orar, que a minha acção seja linguagem em oração. Deus está presente.

2) traz as tuas queixas a Deus (Salmo 10)

O segundo passo é trazer as nossas queixas a Deus, Vroegop escreve que a piedade não é uma forma de estoicismo, sem queixa não há lamento, o sofrimento traz naturalmente ira, negação, desespero, amargura; perante aquilo em que acreditamos acerca de Deus e do Seu poder a alternativa é trazer as nossas queixas, as nossas dúvidas em oração.
Parafraseando o autor, o lamento é a linguagem de um povo que acredita na soberania de Deus mas vive num mundo de tragédias. Quão importante será nas actuais circunstâncias não perder isto de vista?

Por isso é importante trazer as nossas questões perante Deus - mesmo ou principalmente quando Deus parece distante - não é usual pensar ou achar que Deus parece esconder-se quando sofro? Desta forma as nossas questões devem lidar com o como é que (13:1-2; 35:17; 74:10; 94:3) e por que é que estas coisas acontecem (Salmo 22:1; 44:23-24; 80:12)?

Vroegop é assertivo, Deus não somente ouve, como lida com as nossas dores, medos, ira e desilusão, a nossa frustração e queixas são uma oportunidade de nos achegarmos a Deus e não de nos afastarmos Dele.

"I found that pain made me myopic. It tended to narrow my focus on the sorrow that took over my life. Nothing else mattered (...) With this desperation for relief, it was easy to become preoccupied with the weight of sorrow, the unfairness of life, or the fear of never being happy again. Left unchecked, this could create a self-focused emotional spiral. But as I wrote out my complaints and talked to the Lord about them, it was surprising how they lost their hold on me." p. 51

O lamento ensina-nos a pedir e confiar, a olhar para a queixa como um caminho para reorientar o meu pensamento e sentimentos; perceber que há uma forma correcta de nos queixarmos é importante,  como importante é fazê-lo com humildade, a forma  mais simples e segura de o fazer é orar a Bíblia, orar as queixas e dúvidas de servos de Deus e reconhecer que Jesus conhece as minhas dores e dificuldades (Hebreus 4:15). A queixa é um caminho para me aproximar de Deus.

3) pede a Deus com confiança (Salmo 22)

O terceiro ponto é para mim um ponto importante, confio em Deus, mas por isso às vezes oro com algum distanciamento, porque coloco as coisas nas suas mãos, sem exercitar muito a minha fé. É um paradoxo, eu sei, mas sou uma criatura de paradoxos. Assim, a petição feita a Deus deve ter como base o Seu carácter e as suas acções passadas, como Deus é e o que Deus fez no passado compele-nos a fazer pedidos corajosos, ou seja, os pedidos são feitos com base em quem Ele é e no que Ele prometeu.

"Yet means that I choose to keep asking God for help, to cry out to him for my needs, even when the pain of life is raw(...) Part of the grace of lament is the way it invites us to pray boldly even when we are bruised badly." p.59

O desespero da dor, em conjunto com o conhecimento do carácter de Deus, leva a pedidos corajosos, a verdade é que oramos de forma diferente quando passamos pela dor e estamos desesperados. 

"It shines a spotlight on our powerlessness to control everything." p.60

Vroegop deixa 9 tipos de pedidos para nos ajudar a compreender melhor este ponto.

1) Levanta-te, ó Deus (Sl. 3, 7, 9, 10, 17, 74, 94);
2) Ajuda-nos, Senhor (Sl. 60:11-12);
3) Lembra-te da tua Aliança (Sl. 25:6);
4) Que a justiça seja feita (Sl. 83:16-18);
5) Não te lembres dos nossos pecados (Sl. 51; 79:8-9);
6) Restaura-nos (Sl. 80:3);
7) Não fiques em Silêncio, ouve-me (Sl. 28:1-27; 86:6);
8) Ensina-me (Sl. 143:10; 90:12; 86:11);
9) Vinga-me (Sl. 35:23-24; I Pd. 2:23).

"Lament is an expansive prayer language". p.65

4) confia e louva a Deus (Salmo 13)
Finalmente, o último ponto.

"Suffering refines what we trust and how we talk about it." p.71

A dor pode tornar-se uma plataforma para a adoração, o sofrimento pode levar-nos à confiança. O sofrimento deve-nos levar à confiança permanente, a evitar a passividade espiritual.

O salmo 13 mostra lamentações de David baseadas no carácter de Deus, o "mas" mostra isso. A confiança não depende das circunstâncias.

"Learning to lament is a journey as we discover how lament can provide mercy when dark clouds loom. It is how we learn to sing and worship when suffering comes our way." p.84

O caminho do lamento não é feito na nossa força, é feito na dependência de Deus, no aprofundar do conhecimento Dele e da confiança Nele. Que nos maus momentos aprofundemos o nosso relacionamento com Deus orando, trazendo as nossas dúvidas e dificuldades aos seus pés para que a nossa fé e confiança aumentem à medida que saboreamos mais da Sua graça e misericórdia.



segunda-feira, 9 de março de 2020

Chico Bento - Arvorada é mais um excelente título de Graphic MSP. 

Arvorada segue o relacionamento do caipira Chico Bento com a sua Avó Dita, Orlandeli cria uma trama em que mostra a importância dos laços familiares, da forma como somos moldados e educados pelos que mais amamos.


O livro começa com a Avó Dita a chamar Chico para ver um ipê amarelo em flor, mas Chico troca a visão da árvore por um bolo quente. 

No dia seguinte, as flores caíram e o momento fugiu. A Avó explica-lhe que precisamos de parar para apreciar a beleza do que nos rodeia enquanto podemos. Num livro em que a vida do campo impera, há pequenos momentos para enxergar a beleza, da pesca ao saborear uma laranja, de nadar pelado no rio ou riacho a apanhar goiabas, mas Orlandeli não nos deixa ignorar os relacionamentos familiares e amizades de Chico Bento.



Arvorada lida com a morte ou com a presença desta, com o papel da avó como construtora ou co-construtora da personalidade de Chico, a forma como a família nos ensina, molda e educa. Arvorada é sobre a importância de pararmos e vermos a beleza na natureza, mas também sobre a importância de amarmos os que nos amam e rodeiam, de passarmos tempo com eles. 


A simplicidade da vida no campo, o valor das amizades, o medo de perder um ente querido, o amor e a dor, a vida e a morte, tudo é embrulhado numa arte que une o bucólico e o mitológico. Uma singela mas bela história de Chico Belo.