terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

The Third Man

Li O Terceiro Homem de Graham Greene há mais de 20 anos, não sei se o sentimento que me deixou (acho-o mediano e o final expectável) foi resultado da qualidade do mesmo ou de desilusão ao lê-lo após O Fim da Aventura (esse sim foi uma revelação).
Acho que já vi parte do filme posteriormente, mas sem grande atenção, a atenção que merece.

Na Viena pós Segunda Guerra Mundial, Martins tenta descobrir a verdade sobre a morte de Harry Lime, com quem se ia encontrar, tentando descobrir quem é, se é que há, o terceiro homem na cena do crime de que ouviu falar.
O que me interessa menos em O Terceiro Homem é a trama, o que não quer dizer que esta não esteja bem urdida, que o mistério que se desvela seja essencialmente uma história de ambivalente moralidade, por parte de todos os protagonistas. Anna ama Lime apesar da sua natureza e práticas, Martins cai por Anna apesar dos sentimentos desta por Lime, e Lime está morto e nunca amou ninguém senão ele mesmo.
O que realmente me cativou foi a ambiência, a profundidade do preto e branco, a banda sonora (Anton Karas), o negro e as luzes, os planos citadinos e subterrâneos, as sombras, as vozes, o gato, o belíssimo plano final, sem palavras, em que Anna caminha na direcção de Martins.
E não, não vou, como a esposa pressagiou, demorar muito mais tempo a escrever sobre esta obra de Carol Reed. Se me parece que o filme conta a história do livro homónimo, conta-a de forma superior àquela que me lembro de ter lido e isso é culpa do realizador. O estilo, a cromática, a música, a ambiência tudo isso faz de O Terceiro Homem um grande clássico. E depois há as cenas icónicas, a cena final, a fuga final, e outras mais que não descrevo para não tirar prazer a quem veja o filme pela primeira vez.
Há quem lhe tenha chamado o melhor filme britânico de sempre. Vejam-no e tirem teimas.



Blackkklansman de Spike Lee


Blackkklansman de Spike Lee conta a história de Ron Stallworth (John David Washington), o primeiro polícia negro de Colorado Springs, que consegue "infiltrar-se" no Klu Klux Klan, na década de 1970, sendo negro e havendo vontade da organização em conhecê-lo é o detective Flip Zimmerman (Adam Driver) que toma o seu lugar, mantendo-se Ron como a mente e voz por trás da infiltração. A voz é motivo para várias piadas ao longo do filme, porque os supremacistas acham que conseguem identificar um negro seja pela voz, seja pela forma de falar.
Spike Lee realiza um filme sui generis na forma como trata a história, há uma série de coisas habituais em filmes sobre racismo que Lee não faz, há um caminho que acaba por não percorrer e o filme não perde com isso, pelo contrário. O que quero dizer com isto?
Ao terminar o filme pensava em Mississipi Burning que revi há uns meses, filme sobre crimes raciais, em que o background de criminosos e polícias é escalpelizado, há uma atenção à descrição da maneira de pensar, da "racionalização" por trás do racismo na mente do racista, o Sul racista é-nos tanto apresentado como definido. Mesmo The Green Book parece-me mais formatado, tanto na escrita, como nos momentos de humor, é mais expectável. Ora, Spike Lee perde algum tempo com a descrição psicológica das personagens, maioritariamente através das imagens, cabe ao espectador defini-las, mas não perde tanto tempo com a explicação do acto, antes filma-o em diversas nuances, há o racismo para com negros, mas também contra judeus, há o racismo explícito, mas também o velado, há o racismo presente nas forças policiais, mais ou menos tolerado ou esperado, mas há a presença também de membros do KKK no Governo ou em outras diversas instituições. Lee parece querer equilibrar o retrato da luta contra o racismo dando mais tempo de antena à cultura e luta negras, há uma apresentação e discussão dos filmes de black explotation, há discussões acerca das diversas formas de luta possíveis...
Lee usa o cinema, bem como a história do cinema, para contar a sua história, e usa The Birth of a Nation para ilustrar o êxtase do racismo. O cinema vende, mas também doutrina, e aqui Lee parece querer mostrar que pode usar o cinema de forma aparentemente menos doutrinária e dar-nos um filme que escorregando para a comédia, lida com assuntos tão divertidos como violência policial, racismo, abuso de poder, e fá-lo de forma objectiva. Ao nos dar uma história dos anos 1970 e terminar com imagens de 2017, Lee parece dizer que a realidade pouco mudou, que os problemas raciais continuam na ordem do dia. Não precisamos neste sentido de ver o que já vimos vezes sem conta, não precisamos de ser doutrinados, precisamos somente de abrir os olhos, que pode ser assustador, e agir. Aliás, a vitória de Ron dura muito pouco tempo, as pressões são diametralmente opostas ao tamanho das vitórias, a cultura, o respeito pelo outro, as mudanças demoram tempo a consolidar-se. Farto de pregar isto, Lee dá-nos uma história que fica a ressoar.

(Ando para aqui a remoer um texto sobre o humor em dois filmes de guerra, Stalag 17 e The Great Escape, e é difícil fugir à discussão do papel do humor neste filme, de que forma o humor transforma o modo como recebemos o filme no seu todo? Sem humor este filme seria bastante diferente. Lee está a rir dos racistas? Está a dar-nos uma visão, humana e ainda assim optimista, da luta racial?)




segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Brevíssimas de Cinema

Tenho definitivamente um problema com Jordan Peele.
Não consegui ficar fã de Get Out por considerá-lo uma cópia de Skeleton Key, a ciência é trocada pela magia e o enfoque no racismo é mais vincado no filme de Peele, por isso, o final deixou-me um sabor acre na boca. O que me parecia original afinal revelou-se uma repescagem.
US parece-me um filme superior em tudo ao anterior, boas interpretações, uma banda sonora apelativa, sentido de humor negro, uma visão cáustica da contemporaneidade, o mistério e a estranheza da narrativa, mas o final quase que deita o filme abaixo, é preguiçoso, não faz sentido e, em vez de me surpreender, confirmou-me as dificuldades que tenho com Peele, aprofundadas com os três episódios de Twilight Zone que vi e que me levaram a rever os originais.
Peele faz da raça tema de filmes de terror, o que é salutar, e fá-lo de forma interessante, incomodando o espectador, fazendo-o duvidar da realidade que vê, mas a forma como termina as narrativas irrita-me, parecendo querer puxar um Shymalan a cada momento diminui a qualidade do que criou até aí.


Gostei menos de The Marriage Story do que esperava, o contexto e determinados aspectos narrativos pareceram-me demasiado americanos, explicito, o contexto legal e litigioso é demasiado americano e quase que se torna o centro do filme - tirem os advogados e digam-me com o que ficam. Adam Driver é majestoso na interpretação. Num filme de actores (Liotta e Dern estão excelentes, ainda que me pareça que as personagens são serão do mais complicado que tenham representado, e para ser mais divisor, Scarlett Johanson não me convenceu) ele brilha com fulgor. Não vejo Kramer contra Kramer desde a década de 90, mas parece-me um filme mais equilibrado, realista e objectivo acerca do divórcio. É capaz de ser fruto de anos e anos a ver Bergman, Allen e outros a escreverem e realizarem filmes superiores sobre divórcios e relacionamentos conjugais.

The Two Popes é também um filme de actores, mais entradotes, em que a interpretação, nomeadamente a de Hopkins, pode ser vista mais como envelhecimento do que como arte. O passado de Bergoglio é mais escalpelizado, o de Ratzinger fica-se pela crítica fácil da opinião pública. O gelo germânico e o à vontade sul-americano entram em choque, tanto nos costumes e hábitos, como na visão teológica e nos relacionamentos.
Num filme com tanto para me desinteressar, Two Popes surpreende pelo sentido de humor e definição psicológica das personagens. Um estudo sobre as diferenças entre estes dois homens. 
Um católico dos 7 costados poderá ter bastantes mais problemas com a narrativa do que eu!



segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Coisas que tenho feito/aprendido com o caso dos elevadores

- falei mais com os meus vizinhos durante estas duas semanas do que nos últimos anos;
- tenho tido oportunidade de, brevemente, falar daquilo em que acredito;
- o Trono da Graça está ocupado, há coisas que eu não posso fazer, como dizia um amigo, não te gastes com o que Deus não te chama a fazer, ou seja, não te desgastes com a mania de que és Deus. Deus é soberano, eu não.
- quão produto inacabado ainda sou, esta situação tem-me mostrado quanto em algumas áreas a minha fé e confiança ainda não é o que eu desejaria que fosse. Se depender da minha força e vontade não é grande fé, certo?
- a ansiedade corrói as estacas da confiança, consciente ou inconscientemente. Uma dos meus versos preferidos ajuda a manter a calma, A cada dia o seu mal. A ansiedade tende a integrar todas as possibilidades e semanas de um calendário num momento interminável vivido ao longo de dias...
- a minha mente tende a elencar planos, hipóteses, realidades paralelas, planos de vingança ou situações em que um dos actores poderia ter agido de forma diferente. Esta vida mental tende a ter um papel real no meu dia a dia, mas falso na resolução de problemas e na dependência divina.

Deus me ajude, em nome de Cristo e pelo Seu Espírito.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Elevadores, ansiedade e oração

A semana passada cheguei a casa para me deparar com uma carta da empresa de elevadores, enviada a todos os condóminos, com uma dívida alta, a ameaça de um processo e o desligamento dos elevadores.
Já tinha a percepção de quão fraca é a empresa de administração, mas esta foi a gota final. Passei o sábado ansioso, contra vontade. Um bom protestante tem na confiança em Deus um dos seus garantes, mas a mente e a tensão teimaram em estar activos. 
No domingo, transmiti a alguns irmãos o assunto e pedi que orassem por isso, a ansiedade ficou em segundo, ou terceiro, plano. 
Na segunda-feira, fui à administração, a pessoa que estava ao balcão recusou-se a responder às minhas questões, telefonei para a administradora, a chamada foi recusada algumas vezes, enviei mensagem, sem resposta. Fui aos julgados de paz, informei-me sobre algumas coisas que poderia fazer e marquei uma reunião informal com os condóminos para o dia seguinte. 
Com alguma surpresa minha, cerca de metade do prédio esteve presente, avançámos numa série de propostas e dividimos tarefas por algumas pessoas. Ontem, dirigi-me à empresa de elevadores e apresentei o caso, tendo sido muito bem recebido, compreendido e saí animado com a conversa e promessas recebidas.

O foco do texto não é isto que acabei de escrever, este preâmbulo todo pretende apresentar somente o contexto.
Tendo a ser ansioso por natureza, mas nos últimos anos tenho conseguido confiar e depender mais na soberania, sabedoria e graça divinas. Passámos enquanto família por períodos mais complicados financeiramente falando, mas não só, e aprendemos a confiar, nunca nos faltou o pão nosso de cada dia, nem o que vestir, isto tem-me ajudado a valorizar o dinheiro de uma outra forma.

Sistematicamente, a noção de que Deus cuida de nós (se cuida dos pardais, se veste os lírios do campo...) está cristalizada, li diversas passagens ao longo desta semana, algumas conscientemente, outras vieram à nossa presença sem estarmos à espera, mas todas motivaram-nos para confiar em Deus.  (Lucas 17: 5,6; Lucas 22: 24-27; Lucas 18:1-8; Tiago 1:2-8, Salmos 59, 61) Como é que eu vivo aquilo em que acredito quando a mente e o coração tendem a não repousar nas promessas?! Tive de lutar contra o meu eu diversas vezes, pregando a palavra a mim mesmo.

Houve duas lições que me marcaram esta semana:
1) lembra-te de que as provações devem produzir perseverança e fé! O foco ao passar por dificuldades deve estar no alto e não no meu umbigo. Confiar, depender, orar, esperar em Deus, uma das conclusões que partilhávamos no culto familiar era de que o zelo e foco da oração e da esperança devem ter a mesma força em tempos de tribulação e em tempos de bonança, i.e., confiei de forma prática e constante esta semana, o desejo é que isso continue quando aparentemente não tiver problema algum. Quantas vezes me esqueço de viver Coram Deo.
Por outro lado, recordar perante os problemas e ansiedade presentes o cuidado passado de Deus para comigo. Faz sentido ser animado por Deus à 3ª Feira e desesperar à 4ª Feira? Se Deus demonstra que está a agir, confia...espera Nele.

2) apesar de confiar na oração, por vezes esta é pouco mais do que um ritual místico, a que dando importância a retiro pelo forma como o faço. Explico, confio no Deus a que oro, mas por vezes a oração é mais uma forma de cumprir essa fé do que de viver essa fé. Tendo a ter cuidado com a forma como oro, o ónus está em Deus e não em mim, e isso por vezes retira-me a fé de que Jesus tanto fala, (Buscai e achareis, batei e abrir-se-vos-á; se tivessem fé ordenariam a esta amoreira que se plantasse no mar e ela iria!). Esta semana orámos com fé, pedimos por coisas específicas, conscientes de que a Sua vontade é soberana e que Dele dependemos. Os Salmos que temos lido em família indicam-nos que as provações e problemas são uma realidade comum, mas que temos liberdade para pedir por livramento e acção de Deus por nós.
Por outro lado, é bom saber que somos um corpo, é bom saber que há pessoas que oram por nós e se vão mantendo em contacto connosco, ferro que afia o ferro, gente que carrega os fardos dos outros, esta semana sustentei e fui sustentado em oração, e isso ajuda-me a dobrar os joelhos e o pescoço!

Enfim, o assunto ainda não está resolvido, mas Deus já me transformou o entendimento. 
Soli Deo Gloria
















terça-feira, 5 de novembro de 2019


Os Respigadores e a respigadora, Agnès Varda (2000)
Gosto dos documentários de Varda, são sempre idiossincráticos, versam sobre o tema mas não se prendem a este, se Varda encontrar algo que valha a pena pensar ou filmar fá-lo sem constrangimentos e o final deste filme é disso exemplo, quando filma as aulas gratuitas de alfabetização de um homem que encontrou na rua a procurar e comer os restos deixados após o mercado.
O filme baseia-se no acto de respigagem, acto referido e permitido no código penal e em éditos do século XVI, como bom protestante relembro-me da lei mosaica que também o previa e da história de Rute e Noemi.
Agnès filma os respigadores sobreviventes à entrada do século XXI, no campo poucos são os que ainda persistem, seja por ignorância da lei, seja por proibição dos donos das explorações.
Da apanha da batata, às vindimas, às diversas frutas, passando pela produção de ostras, a câmara de Varda filma as dificuldades daqueles que seriam beneficiados pelo acto da respigagem, respigando também ela coisas nesse processo, imagens, conversas, experiências, duas cadeiras e um relógio sem ponteiros.
A incongruência de se preferir estragar o desperdício (as batatas ou uvas não aproveitadas estão na ordem das toneladas, seja por se obedecer a uma quantidade específica para se fazer parte de uma região demarcada, como no caso do vinho da Borgonha, seja pelo tamanho e aspecto específico para vender em supermercados, que faz com que muitos produtos agrícolas sejam deixados por apanhar ou deitados fora) a matar a fome a quem os podia apanhar é clara.

Agnès dá o ponto e o contraponto, da conversa com os "vagabundos", como lhes chamam os ciganos que moram perto deles, passa para o chef Michelin mais novo em França na altura, de uma cultura de sobrevivência à custa dos restos para restaurante com o menu de degustação a 600 euros, onde o chef também faz a respigagem de produtos para a cozinha. Ambas são experiências de respigagem, ainda que diametralmente opostas na necessidade de quem a pratica.
Mas os documentários de Varda não são somente descritivos, são inquisidores, mente inquieta, a realizadora indaga, persegue, visita, procura compreender, talvez por isso não seja de estranhar que ela pegue na contradição de no campo já não existirem respigadores mas estes abundarem nas grandes cidades, dobrando-se e apanhando comida dos caixotes ou das ruas para sobreviver.
E enquanto o faz, Varda não deixa de se admirar com as pequenas e belas coisas, seja com as batatas em forma de coração que leva para casa e filma, seja para filmar os sinais de velhice e antecipar a morte, a morte que continua a esperar em Olhares Lugares de 2018 com JR, de resto há praias, como nos restantes documentários que vi, e há a câmara a filmar, Varda aproveita os bons e maus planos e brinca com isso.
Há no entanto uma diferença estética este filme para Olhares Lugares e As Praias de Agnès, neste não há uma preocupação estética tão grande com planos, talvez pelo uso maior da handy camera, pelo aspecto "artesanal" das imagens obtidas por esta. Neste sentido, é um filme inferior aos dois documentários referidos acima.
7/10







Shoplifters, de Hirokazu Kore-eda (2018)
O filme apresenta-nos uma família sui generis, uma avó, um casal, uma rapariga e um rapaz que vivem em condições deploráveis. Apesar de irem trabalhando, os rendimentos pouco mais dão do que para sobreviver, pelo que vão vivendo de uma série de pequenos roubos e estratagemas. Quando o pai e o filho encontram uma menina, vítima de maus tratos e subnutrição, toda a família a adopta, mostrando toda a sua humanidade e empatia no decorrer dessa acção.
O filme dura duas horas e quarenta minutos, o dia a dia da família é escalpelizado, percebemos a humanidade dos seus intervenientes, as ligações que existem e se vão fortalecendo entre eles.
As dificuldades do Japão moderno são descritas, a inconstância profissional, a ausência de segurança profissional, a indústria do sexo como escape profissional e como retrato das dificuldades de relacionamento ou como paradigma de novos relacionamentos, os chat-rooms sexuais, por exemplo, da dificuldade em viver com poucos recursos, mas o filme também consegue ser luminoso, com as pequenas conquistas vividas em família, da casa como castelo mesmo quandose vive numa "barraca", do amor, da abnegação, do sacrifício.
Uma cena belíssima, o rapaz ensina a rapariga "adoptada" a roubar, o dono do estabelecimento deixa-os levar a cabo o roubo, chama-os, dá-lhes dois gelados e diz ao miúdo para não a ensinar a roubar, perante o ar atónito deste.

O filme parece ser uma comédia de certos costumes, uma imagem delicodoce de uma comunidade nas frestas da sociedade, e é, mas termina de uma forma que passa a ser bem mais do que isso, uma crítica à sociedade contemporânea japonesa, e um hino à família ou ao espírito familiar.
8/10